Por Mário Beja Santos ||| Logo o título, digno de um romance, e acredite o leitor que a viagem proporcionada por Susana Neves mete história, botânica, religião, algo mais, mas a estrutura óssea da obra tem o clímax de um belíssimo romance histórico; nunca uma mata, neste caso o bosque dos carmelitas descalços, teve o condão de nos agarra pela gola desde a primeira página até chegarmos à explicação do título, algo parecido com a procura da elevação extrema, o acesso ao sagrado assumindo frontalmente todos os riscos que lhe estejam associados, a fusão do ego com o divino. Já na despedida da sua viagem, a autora ainda adianta: “Em termos ontológicos, o amor ao precipício supõe não ter medo do sagrado, ou seja, da sua profundidade, inexplicável racionalmente, e da vida que também o manifesta com subtil intensidade. Significa não ter medo de correr todos os riscos, exceto o risco maior de não viver já neste mundo na presença insondável e deleitosa da clara luz do Divino, mesmo quando esta se revela sob a forma de uma sombra.” É mais do que surpreendente o tratamento do tema, uma diacronia etnobotânica de enredo um tanto enigmático que irá desembocar, após a extinção das ordens religiosas, num Buçaco de vilegiatura perto de uma estância termal e numa dessas histórias de palácio mágico, tudo começara com a ideia de um pavilhão de caça real e acabou no expoente máximo da arte neomanuelina, de paredes meias com o templo religioso dos carmelitas. É este o enredo surpreendente de Ama o precipício, Viagem à Mata Nacional do Buçaco, por Susana Neves, Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2022.
Tudo começa com a chama mística de Santa Teresa de Ávila e San Juan de la Cruz, os criadores dos carmelitas descalços, coube-lhes criar numa serra um local de recolhimento, assim começa a história dos monges do Deserto dos Carmelitas Descalços da Província de São Filipe de Portugal, ali se posicionaram, a mais que 500 m de altitude, entre práticas de ascese e o plantio de milhares de árvores. E a autora recorda que o cedro-do-buçaco não é mais do que o cipreste-do-méxico. Assim nasce o ideal do monte Carmelo português, em pouco tempo o que fora uma quase deserto nesta serra que pertencera aos monges beneditinos do Mosteiro da Vacariça, e onde houvera arborização pelos frades ermitas da Confraria da Nossa Senhora da Graça, nasceu um coberto florestal quase paradisíaco, em largas dezenas de hectares, murados a toda a volta, era uma cerca impeditiva a quem se atrevesse a destruir a presença do sagrado num bosque um tanto místico, um tanto mágico. Deu-se, de certo modo, a rotura desta cerca por razões de imperativo nacional, pois, como é por todos sabido, por aqui andou Wellington que derrotou em 27 de setembro de 1810 o contingente napoleónico comandado por Massena, até os carmelitas intervieram, procurando tratar dos feridos de ambos os lados. A Mata do Buçaco é também uma história de investigação científica e de amor à natureza, não é por acaso que está incluída, desde 2016, na lista indicativa para classificação a Património Mundial da UNESCO. Que belo enredo escolheu a autora para esta reportagem, a visita em janeiro de 1800 de dois alemães, um botânico, outro médico, a Mata era internacionalmente conhecida, e o leitor não deixará de se surpreender com o relato desta viagem e de outras histórias anteriores, tudo para entrarmos no processo fundacional, na importância atribuída a certas espécies arbóreas, entrará em cena San Juan de la Cruz e o seu corpo incorrupto que será retalhado para dar relíquias; iremos ouvir falar em ervas medicinais, dignas de boticas, havia a preocupação de tentar curar o morbo céltico, a sífilis, assunto que hoje se resolve com escassos euros em tratamento com tetraciclinas; e entramos no coração do Carmelo, o Convento de Santa Cruz do Buçaco e o seu ideal de vida baseado na humildade, capacidade de trabalho e pobreza, tudo a reverter para alegria e exemplaridade. O que era vida serena conhece uma interrupção tumultuosa, como jamais se suspeitara, ali bem perto caminham as tropas napoleónicas, no convento estará albergado, de 21 a 29 de setembro de 1810, o futuro duque de Wellington, então visconde, o contingente anglo-luso vai limpar a despensa monacal por completo, acresce que os religiosos também alimentam soldados e camponeses das aldeias próximas. Observa a autora: “Nos dias seguintes à batalha não restará nem uma couve, nem um feijão na horta, nem uma laranja nos dois laranjais. No olival, em vez de se apanhar azeitonas, enterram-se os mortos. Muitas árvores são abatidas, incluindo cedros sagrados e carvalhos seculares, para prover às necessidades do combate, outras ficarão mutiladas pelo impacto das explosões.” A Mata fora transformada numa base militar, tinha inicialmente duas portas, passará a ter seis; rapinava-se livremente, matava-se, violavam-se mulheres de todas as idades. É tocante o relato do resgate dos feridos, excecionalmente a oficialidade francesa mostrará respeito aos frades pela compaixão exercida junto dos seus feridos. Assim nos vamos aproximando do luso termal e da atração da Mata do Buçaco. Há descrições deliciosas, entra em cena o Palace Hotel com os seus visitantes ilustres que deixaram registo da estadia e da visita à Mata. É neste momento que a autora entra em cena, estamos em 2017, ela parte do Luso, desce uma densa neblina da Serra do Buçaco, caminha solitária por esses itinerários, está deliciada a observar espécimes arbóreos multisseculares de grande porte, visita ao convento, conversa com a funcionária, de novo vem à tona a mutilação dos corpos dos santos fundadores para obter relíquias. A autora regressa ainda nesse ano e vai falar-nos de reis que foram até ao Palace Hotel, de uma conversa tensional entre a rainha D. Amélia e a sua secretária, tudo a propósito da descrição da derrota das tropas francesas, a secretária protestava, alegando que em toda a parte os franceses haviam mostrado “bravura e serem dignos da sua pátria”, e a rainha D. Amélia ripostando que, apesar de reconhecer nos franceses bravura, estes haviam sido derrotados pelas tropas francesas e que madame não se esquecesse que Portugal era a sua segunda pátria e ela rainha de Portugal. Também se fala das compras que Salazar fez para a sua quinta em Santa Comba Dão, tudo pagava, resta a correspondência entre o administrador do Buçaco e Salazar. A última visita é em plena pandemia e em 1 de maio de 2021, debaixo do monumental cedro-do-buçaco do jardim do Príncipe Real, onde se sentou John le Carré, quando escritor britânico veio à procura de argumentos para o seu romance A Casa da Rússia, ali a autora disserta sobre o amor ao precipício, melhor desfecho não podia haver para uma reportagem que nos prende e nos incita a ver a Mata do Buçaco na sua dimensão sublime, para além daquele espetacular arboreto. Uma magia da escrita a pedir leitura obrigatória. UA-48111120-1
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