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MN - O facto de se ter jubilado permite-lhe ter mais tempo livre. O que pensa fazer a seguir? SS - Em princípio vou ser consultor do Hospital de São João, no Porto, e mantenho ainda os cargos de presidente do Conselho Nacional dos Centros Académicos Clínicos e do Conselho de Curadores da Agência de Avaliação e Acreditação do Ensino Superior. Em maio, tenho agendado um treino para patologistas, em Belgrado (Sérvia) e, em junho, em Paris, o que me entusiasma muito. É um desafio engraçadíssimo. Isso e ir a escolas secundárias. Tenho já marcadas visitas até metade de 2018. MN - Afirmou que gostava de ser lembrado como professor. Foi a vertente da sua carreira que mais lhe deu gozo? SS - O que mais gostei de ser na vida foi professor de medicina e, de seguida, médico patologista, ajudando os doentes com diagnósticos certos. Nestas duas atividades, dei sempre muito valor ao facto de ser divulgador, algo que acho muita piada e que me permite ser melhor médico e melhor professor. E quero ser lembrado como professor porque é isso que faz a diferença. Pude ajudar as pessoas a irem mais longe, a contribuir para o futuro e, nas suas áreas, a serem muito melhores do que eu fui. Gostava de ser recordado pelo futuro e não pelo passado. MN - Com quantos anos começou a dar aulas? SS - Com 22 anos. E tive alunos de Medicina de todas as idades. No meu primeiro curso como monitor, em 1968, tive como aluno o Júlio Machado Vaz [psiquiatra e sexólogo portuense]. Até ao momento de ser jubilado, dei aulas também a filhos de antigos alunos. Só não apanhei, por pouco, os netos. |
MN - Foi bom professor. Era bom aluno?
SS - Sempre fui muito bom aluno, gostava muito de estudar. E dar aulas, ter atividades e discutir casos, são as formas mais interessantes de aprender. Quando temos que ensinar alguma coisa, só o fazemos se estudarmos e o maior estímulo para estudar é ensinar isso a alguém ou discutir os temas, perguntar. Mas a cultura do nosso país, nisso, é muito má. Temos uma cultura de muita informação, com as pessoas a recorrerem à Internet, onde existe uma quantidade de dados não validados, apresentados como algo que está assente. MN - Tem uma vasta experiência com estudantes de vários países. Como vê o desempenho dos internos portugueses? SS - Os jovens especialistas portugueses, que seguem Anatomia Patológica ou Diagnóstico, são muito parecidos com os de Espanha, da França, da Argélia, do Japão, da China e da America Latina, onde já dei aulas. Mas se comparar os alunos portugueses de medicina com espanhóis e os americanos, os nossos são melhores, o que significa que selecionamos, ainda hoje, alunos muito bons. São mais estudiosos e mais capazes de aprender. MN - E a formação médica em Portugal, como está? SS- Está a piorar. Em parte porque existem alunos a mais para a dimensão dos hospitais, mas também porque não tem sido possível criar uma boa ligação entre estes e as faculdades, entre a parte académica e de investigação e a parte clínica, apesar da qualidade das faculdades de medicina e dos hospitais universitários. Este ano, cerca de 300 alunos não entraram para as especialidades, ficando como médicos indiferenciados, optando depois por emigrar ou por assinar contratos com empresas para serviço de urgência e outras tarefas, a preços baixíssimos, não chegando nunca a aprender mais. MN - O que pode ser feito para alterar este panorama? SS - Na medicina, é fundamental ter uma boa formação de base universitária e nos internatos, e, depois, ter educação toda a vida, mas para que tal aconteça é necessário recompensar os profissionais, coisa que nesta altura não estamos a fazer. Isso leva à elevada taxa de emigração, à escassez de médicos no interior do país e ao excesso no litoral. MN - A solução passa então por uma formação contínua ao longo da vida. SS - Sim. Para além do tempo. Para que os médicos continuem a aprender e a evoluir, para além da recompensa, precisam de tempo. Em todos os países civilizados, os professores são recrutados entre os médicos muito bons, tendo esses 30% do seu tempo protegido para fazer investigação e ensino. MN - É também investigador. Considera que esta seja uma profissão reconhecida em Portugal? SS - Não é uma profissão muito valorizada em Portugal, como não é nenhuma outra. Mas os investigadores não estão piores que os médicos, que têm a carreira em banho maria há anos. Sou a favor de um sistema de promoções, onde os profissionais vão sendo avaliados ao longo do tempo e recompensados com uma promoção, caso a avaliação seja positiva. Se não houver isso, não haverá ninguém na função pública. Eu sempre gostei de ser funcionário público, profissão que considero essencial para a sobrevivência de um sistema. Mas acho que a função pública não sobreviverá se o sistema não for alterado e nós temos uma necessidade absoluta de tipos que gostam da função pública. Tomara eu que tivéssemos muitos políticos que entendessem que a política é uma arte nobre e de uma importância social brutal. Portugal é, em média, um país bastante pobre portanto precisa de ter serviços públicos de qualidade, no ensino, na saúde, na justiça e na segurança social. Sobrinho Simões recebeu, a 05 de dezembro, a Grã-Cruz da Ordem Militar de Sant’Iago da Espada, entregue pelo Presidente da República Marcelo Rebelo de Sousa, honra destinada àqueles que se distinguem pelo mérito literário, científico ou artístico. O fundador do Ipatimup, que vê na educação e na formação a solução para o país, começou a especialização pelo cancro da tiroide, passou de seguida para o do estômago, regressando, mais tarde, à primeira escolha.
MN - Quais as maiores lacunas no serviço médico nacional? SS - Portugal é dos países mais medicados do mundo, o nosso sistema é disfuncional. Temos mais TACs [Tomografia Axial Computorizada] por habitante que a grande maioria dos países europeus. No entanto, existe também uma grande dificuldade em ter médicos em alguns sítios do país, enquanto noutros locais temos médicos que estão, provavelmente, a exagerar nos exames complementares e nas análises. É um paradoxo. E há outro problema. Em Portugal existem dois tipos de pessoas que recorrem à medicina: os doentes e os utentes, ou clientes. Estes últimos são consumidores e não podemos ter os hospitais entupidos pelos mesmos, mas sim disponíveis para quem está mesmo doente. MN - E as soluções para alterar esse panorama? SS - As soluções passam por diminuir o número de hospitais e aumentar as condições, os médicos e os enfermeiros nos centros de saúde. É igualmente importante melhorar a medicina geral e familiar e passar a utilizar melhor o pessoal paramédico. Além disso, cada doente devia ter um médico de família, com o qual pudesse estabelecer uma relação de confiança. Com isso, aumentava-se a saúde e diminuam-se as chatices. Acho também que a população tem que ser mais cultivada, para controlar melhor o seu próprio processo de doença, o que acabaria por se refletir na diminuição do acesso aos hospitais. Há, ainda, a necessidade de criar mais unidades de cuidados continuados e paliativos, devido ao aumento do número de doentes crónicos e idosos. |
O patologista, que queria perceber as doenças mas que nunca gostou de ser clínico, descende de uma família com cinco gerações na área da medicina. “Todos se chamavam Manuel, todos eram médicos e também filhos únicos, menos eu”, contou Sobrinho Simões, cuja esposa, pediatra, é também filha e irmã de médicos. MN - Essas medidas resolveriam os problemas?
SS - Temos de colocar o indivíduo no centro do processo. Um doente de 80 anos tem duas, três ou quatro patologias, como hipertensão, diabetes e colesterol alto. Esse doente não pode andar a saltar de consulta em consulta, tem que haver uma maior organização, colocando o cidadão no centro do processo. Em Portugal, toda a gente ganha em ter muitos atos, isto é, muitas consultas. Se os médicos, os centros de saúde e os hospitais fossem recompensados porque melhoraram a saúde dos doentes e diminuíram o seu fardo, era uma coisa, mas o que adoramos é corrigir catástrofes. NM - Existem hoje em dia mais casos de cancro ou o cancro tornou-se mais conhecido? SS - Existem muito mais casos de cancro, por causa, sobretudo, do aumento da longevidade. Embora o estilo de vida e os hábitos possam ajudar a aumentar a incidência de cancro, o que mais influencia esse aumento é a longevidade. Se vivêssemos só até aos 70 anos, mesmo ficando mais gordos ou diabéticos, não tínhamos mais cancro. MN - Referiu o estilo de vida e os hábitos. Mas já disse, em entrevistas, que é apreciador da carne vermelha… SS - Gosto muito de carne vermelha e todos devíamos ser carnívoros, porque somos filhos daqueles que começaram a comer carne. As outras espécies nunca se chegaram a desenvolver, e morreram. Mas critico o exagero associado ao consumo, não só da carne, mas também do sal e do açúcar, produtos que, apesar de tudo, foram importantes para a sobrevivência da nossa espécie. Hoje em dia sabemos que houve muitas espécies de hominídeos. Nós, porque tínhamos inteligência, porque nos começamos a cruzar menos, porque começamos nascer prematuros para que as mães não morressem no parto, ficamos mais espertos que os outros animais e demos cabo de tudo. MN - Estamos a gastar os recursos… SS - O homem é um predador e como espécie tornou-se numa ameaça para tudo. Deu cabo da biodiversidade e está a dar cabo da água, da energia, dos recursos. NM - Disse, em entrevista, que daqui a 50 anos todas as pessoas teriam um episódio de cancro. SS - Todas as pessoas que nascerem a partir da segunda metade deste século e que chegarem aos 70 anos vão ter, pelo menos, um cancro. A não ser aquelas que morrerem novas e devido a outras causas, como acidentes ou doenças genéticas graves. Hoje em dia, uma em três pessoas tem cancro. Conseguimos controlar 60% dos casos, mas são estes que vão ter um segundo ou um terceiro cancro. Mas o grande problema não é esse. O problema são as doenças neurodegenerativas, que estão a aumentar e não têm tratamento. MN - Quais os tipos de cancros mais prevalecentes em Portugal? SS - O do intestino, o do pulmão, o do estômago, o da mama - na mulher -, e o da próstata - no homem. Já o cancro do pâncreas e do cérebro, embora não muito frequentes, são muito mortais. No caso do cancro da tiroide conseguem-se tratar 95% dos casos. Os ginecológicos, também pouco frequentes, não são um problema tão grave. MN - Qual a sua opinião acerca do sobrediagnóstico? SS - É o grande problema dos dias de hoje. Temos, em Portugal, um paradoxo: há pouca prevenção e pouco diagnóstico precoce, no entanto, temos uma outra parte da população, os tais utentes-clientes-consumidores, a procurar excessivamente por neoplasias pequeninas. Estamos a fazer diagnósticos com muita frequência, de coisas muito pequeninas, que em principio não iam dar chatices. MN - Que efeitos negativos podem daí advir? SS - Quem tem sobrediagnóstico vai fazer sobretratamento, que é mau não só por ser caro mas também porque quem o faz pode ficar afetado a nível psicólogo. Estamos a criar pavores em pessoas que não merecem isso. MN - Relativamente às terapias alternativas, que emergiram nos últimos anos e às quais muitos doentes com cancro recorrem? SS - Não tenho nada contra a utilização de terapias alternativas, como a homeopatia ou qualquer outro placebo, se a pessoa acreditar e se isso lhe der algum bem-estar, embora não sejam terapêuticas médicas. Mas aconselhava as pessoas a só recorrerem a isso quando não estiverem doentes, visto que as mesmas não têm base científica. MN - E quanto às terapias complementares? SS - Há terapias complementares que vão ter o seu papel, porque podem ser importantes em aspetos que não são cruciais. Mas antes de a pessoa embarcar em terapias, tem que ter uma acreditação das mesmas. Nos casos de cancro, atualmente fazemos radioterapia ou quimioterapia antes da cirurgia, chamadas neoadjuvantes, mas essas são terapias confirmadas. Eu sou muito prático, só faço coisas que acho que têm solidez suficiente. |
SOBRINHO SIMÕES: "Tenho medo do cancro, pelo sofrimento que causa."
MN - Eutanásia, um tema controverso… É a favor ou contra?
SS - Não podemos colocar as coisas dessa forma. As pessoas têm direito de decidir sobre o seu próprio futuro e eu reconheço esse direito. Se houver quem ajude a fazer morte assistida, nunca recriminaria essa pessoa, desde que fosse de acordo com princípios. Mas eu nunca o faria. Acredito, contudo, que as pessoas que genuinamente ajudam outros a morrer não devem ser criminalizadas. NM - Já lhe devem ter perguntado. Tem medo do cancro? SS - Tenho medo do cancro pelo sofrimento que causa. NM - Tem medo de sofrer? SS - Hoje em dia reduzimos o sofrimento e não há razão para as pessoas terem medo da dor mas o facto de não haver razão não quer dizer que eu não tenha medo. Tenho medo e não sei como vou reagir caso tenho um cancro e as coisas dêem para o torto. O facto de ter conhecimento sobre esse tipo de doença só piora a situação, porque sabemos as complicações que podem haver. Membro do conselho editorial de 13 revistas internacionais de patologia, tem livros publicados em vários países, dos Estados Unidos ao Japão. O patologista analisa, por ano, cerca de 300 casos de consulta da tiroide de diferentes lugares do mundo, gratuitamente. |
MN - Há uns anos, o Ipatimup uniu-se ao Instituto Nacional de Engenharia Biomédica (INEB) e ao Instituto de Biologia Molecular e Celular (IBMC), dando origem ao Instituto de Investigação e Inovação em Saúde da Universidade do Porto (i3S). Foi a decisão mais lógica, unir estes três centros dedicados à investigação em saúde?
SS - Foi e continua a ser a decisão mais lógica, pela qualidade científica, pela complementaridade e pela capacidade de concorrer e conquistar projetos internacionais, estimulando a fertilização cruzada e o trabalho entre diferentes áreas. O Ipatimup ganhou imenso com esta associação, e saiu reforçado. MN - Ao longo da sua carreira foi distinguido várias vezes. Alguma premiação teve um sabor especial? SS - Muitas tiveram, de diferentes formas. O hospital de Maputo e o Departamento de Anatomia Patológica deram o nome Professor Sobrinho Simões à sala onde se faz o ensino dos internos, isso é uma ternura. Há coisas muito especiais… Em 1996, os meios de comunicação social distinguiram o Grupo de Investigação Professor Sobrinho Simões com o Prémio Bordalo. Fui o único que recebeu essa distinção fora dos grupos de dança. Ganhei o [prémio] Pessoa, em 2002, e o [prémio] Ciência Viva, em 2016, que estão nos extremos do espectro: um é relativo à divulgação da ciência, o outro em homenagem à carreira. Já o de 2015 [patologista mais influente do mundo] decorreu de uma votação entre pares. Acho que o conquistei devido à influência que tenho nas escolas de patologia por esse mundo fora. MN - Li que gosta de voltar aos locais onde já foi feliz. SS - Gosto de voltar aos mesmos sítios, por uma questão de bom senso. Isto é, voltar aos sítios que gostei e que me trazem uma recordação boa. Não vejo interesse em mudar. Se puder, vou sempre aos mesmos restaurantes e hotéis. Também vou sempre às mesmas cidades de que gosto. Não sou um colecionador de países. Olhe que nunca me sentei à mesa de um restaurante sozinho. Para mim almoçar e jantar é um ato social. Se estiver sozinho, vou a um balcão e compro uma sandes. Almoçar ou jantar, tal como viajar, é, para mim, um ato social. |