Por Mário Beja Santos ||| Quando, por Manuel Alegre, Publicações D. Quixote, 2020, é um daqueles poemas que nos obrigam a pensar que na sabedoria da idade nos libertamos de muita enxúndia, fica tudo na mensagem essencial, porque o vate se abalança a falar das longas décadas de caminhos percorridos, dos lugares da infância, das travessuras das fronteiras, dos amores jovens, da primavera e do verão, dos muitos sonhos em pôr mais justiça neste mundo, na preocupação ambiental, o que foi viver no exílio a luta contra a ditadura, o ter pedido a Deus que salvasse alguém naquela guerra em que participou, a esperança que nunca desvaneceu depois desse passado quase excessivo “tão grande que talvez outro futuro aí comece”. Abalançado poema onde pontifica a memória de toda essa gente, de todas essas situações, das ditaduras a que se assistiu, e de viver o tempo em que esta globalização pode ter o nome retocado de Babilónia. Em dois momentos, esta é a minha modestíssima opinião, o poeta que se diz arcaico, decide trombetear sobre o valor do seu combate pela escrita, aquilo que se fixa em livro, e aquele estado memorável em que a não-escrita é o arrimo para continuar; como igualmente ele nos vai falar do mundo mais desigual, quando tudo nos levava a crer, nas vigílias da luta política, que se caminhava para um mundo transformado com mais respeito pelo planeta azul e mais decência pela condição humana. E o que decide trombetear são poesia que dentre a muitíssima que nos tem oferecido tem vigor imemorial. Assim:
“Um livro para escrever um livro para ser redigido nas margens da própria escrita. Um livro com todas as sílabas do avesso e pássaros a cair para dentro das imagens um livro como a brisa de passagem um livro não livro mas apenas um rumor na folhagem. Um livro que se perde em cada célula do corpo e pulsa no ritmo do ser e do não ser. Nasce já morto e sempre de si mesmo ressuscita. Um livro para escrever e para o qual não há nenhuma escrita. E no entanto é o que está na voz que dita. E que se escreve sempre sem o escrever. Nessa não escrita cujas sílabas são o único dizer”. O vate questiona toda a comunicação, a futilidade instituída nas redes sociais, os tweets lúgubres e labregos, apela à ressurreição a Walt Whitman, “com teu verso de trovão / e varre com tuas folhas de erva / aquele só que twita merda”. Pois é esta a comunicação da globalização a que nos confinámos, e o vate de sonoridade épica não se agacha perante a fatalidade, protesta e dá-nos o segundo momento em que a poesia pia mais fino, é também para guardar ou para andar nas ruas a declamar, tem o dom do protesto que tanto incomoda como avassala a nossa consciência: “Eu vi os sem emprego ou sem abrigo nas ruas da cidade sob portas fechadas eu vi os que passavam como sonâmbulos trazendo às costas restos de si mesmos o pouco pão o sono a falta a vida vi os que buscavam Deus e não achavam ou talvez o trouxessem também às costas vi máscara sobre máscara e a pele sobre a pele e de tudo o que vi o que doeu foi ver que se tentou mas que no fundo mais desigual que nunca está o Mundo”. Não desmerecendo o valor da poesia, afronta-nos, “mas sem poesia a vida o que valia?”, ser vate, épico canoro, de voz quente e refulgente, agente ativo por quatro estações da vida, convida-nos a libertar a palavra poética de tanta tática, “trazê-la ao falar comum onde de súbito/ irrompe no poema a música do mundo”. Quanto ao tempo, estamos entre o agora e o nunca, será quando enfrentarmos uma nova verdade das palavras e contarmos com a poesia para que o mundo seja mais justo, há que usar as armas mais expeditas para demover carniceiros, arruaceiros, palafreneiros do ódio, e repor o princípio da equidade, depois de todas estas epidemias. Como ele faz soar na sua trombeta: “O poema é a última conjura”. Pode ser que seja um poema em dez cantos, os peritos que verifiquem. O que me encanta é ver este octogenário militante, desperto, a remexer no fogo e a animar a malta, pois o quando é o sonho que nos encanta e que faz flutuar os nossos estandartes por um mundo melhor, nós, os conjurados. O melhor de Manuel Alegre, épico, sempre um Camões para o nosso tempo. UA-48111120-1
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