Por Mário Beja Santos ||| Aqui está ele, um Mário de Carvalho que não vem sobre a forma de romance, novela, conto ou teatro, são fogachos que o acometem, como ele diz ao correr da pena, uma absoluta indiferença a epifanias, litanias e nem uma palavra com culpas e desculpas. E avisa discretamente que é muito bem capaz de não ficar por aqui. De maneira que é claro…, por Mário de Carvalho, Porto Editora, 2021, é um carrossel de reminiscências onde predomina este feitiço de revolver matérias sobejamente conhecidas com uma impressão muitíssimo própria, veja-se este breve apanhado sobre as brincadeiras numa escada de ferro: “As mães nem sonhavam o gozo que eram aqueles saltos na escada das traseiras. Um enorme estrondeio com tudo a estremecer e a ressoar. Ainda vibrava, quando vinham, num susto, à porta da marquise. Até os gatos, milhentos, num pátio térreo ao abandono, suspendiam o lamber e olhavam. Não foi nada, mãe. Não foi nada, tia. Agora já não se tratava daquela descida sonora, marcha em fila, pés batendo forte na chapa, do topo à base, da base ao topo, coisa para durar, provocando o maior barulho possível, alarmando a vizinhança. Calem-se com isso, olhem que o senhor Mendes está doente. Pois estaria. Mas não nos deixavam ir para fora daqueles pátios enfiados, muros, azulejos, arames e nespereiras. Os outros tinham bola de trapos, sempre a desencantá-las debaixo dos carros. Correrias livres pela rua. Empedrados e asfaltos. A nós, restavam as escadas de ferro”. ra editar. Um escritor que andou por várias paranças em Lisboa, fala na zona de Sapadores, em Alvalade, no Caramão da Ajuda, mas também morou na Rua Major Álvaro Pala, em Setúbal, frequentou o Liceu Gil Vicente, como anda num estuante vaivém de relances breves vamos em segundos para a crise universitária de 1962, acompanha a mãe numa visita ao pai preso no Aljube, há saídas a salto do país, a lembrança obrigatória de gente da nossa geração daqueles cinemas com dois filmes, sobretudo na linha da Baixa e avançando em linha reta pela Avenida Almirante Reis até à Praça do Chile subindo a Morais Soares e até Sapadores, aí pontificavam o Cine Oriente e o Royal, pratos obrigatórios de um filme de cowboys ou pancadaria e outro um tanto mais elanguescido, podia aparecer Ingrid Bergman vestida de freira. Pesam-lhe os encontros clandestinos, os indefetíveis códigos para contato espúrio, não se esquecem os funcionários do Partido, ei-lo em Paris, indocumentado, melhor dizendo com passaporte falso, morreu-lhe o mano e a mãe, aos noventa e cinco anos, ainda deixava correr as lágrimas sempre que se mencionava aquela perda, tão remota e querida. E agora a memória orienta-se de Paris para a Suécia, a cidade é Lund, diga-se de passagem que tem um centro universitário de respeito, de imediato a memória vai para o pai, agente comercial na Baixa, daqui partimos para os meandros da clandestinidade, aqueles locais de Sapadores estão sempre a impingir-se na memória, tal como os piqueniques ao domingo, retoma-se o fio da memória para o dia em que levaram preso o pai, inevitável uma referência à escola primária, passou ao lado da convivência com a Mocidade Portuguesa, mais tarde, em meados da década de 1960, coube-lhe dar uma mãozinha na reorganização do Partido, se já ouvimos falar no Liceu Gil Vicente é também bom falar-se no Liceu Camões. E há uma palavrinha sobre os cafés de Lisboa, veja-se esta mestria de simplicidade:
“O café de que eu quero falar ficava na Almirante Reis, aos Anjos. Do outro lado da avenida, em esquina, o Ribatejano, com o seu tamanhão, as suas mesas de mármore escuro, os seus bilhares (o toque das tacadas atravessava a rua?), a sua multitudinária frequência. E, também, a qualidade do seu café, propriamente dito. Do lado de cá, ficava o Colonial, um pequeno espaço que, à noite, servia bifes que nem eram maus. Mesas simples de fórmica, cadeiras vulgares, uns espelhos…. Aqui pontificava o excelente, simpaticíssimo, competente senhor Vaz. Era um prodígio de acrobacia, um virtuoso da rapidez, um mágico dos pratos vazios e cheios. Chamavam da cozinha, ele voava, pratos e travessas na mão, nos braços, às dúzias. Figura pequenina, esguia, direita, casaco creme, o laçarote da ordem. As pernas e os braços não paravam. Perguntava e respondia, entretanto, delicadamente, num sussurro”. E há um texto que sintetiza um tempo, é uma recordação inflexível, enquanto lia estas cargas policiais lembrava-me de uma página de Miguel Torga que tinha experimentado os calabouços da PIDE e que depois do 25 de Abril ali ficou à porta especado a ver a nova gente da democracia a dar as suas provas de fé para ficarem no retrato, é seguramente um texto esplendente, só possível ser escrito por quem viu e experimentou e estava sob a mira desta violência: “Carão balofo, beiçudo, olho descaído, asco de bigodame, figura anafada sob o capacete escuro, pistola-metralhadora FAP em sobraço, sinal de alguma graduação. Eis uma das raras imagens que ficou e vai circulando por aí, junto com outra, muito conhecida, em que a Mauser de um agente, alçada acima da cabeça, em movimento, está prestes a golpear um jovem que tenta escapar, sem grande convicção. A farda era de cotim cinzento, ordinário, abotoada até acima, o capacete de ferro negro, a espingarda sempre nas unhas, correame cruzado no peito. Os superiores tratavam-nos como cães. Mandavam nesses superiores oficiais do Exército, da classe de capitães, que exibiam a sua elegante farda de passeio e não pareciam muito envergonhados da figura triste que andavam a fazer. Habituei-me a sentir aquelas presenças. Às vezes, a correr à frente delas. Quase fui apanhado pelo tropel, junto à Faculdade de Medicina. De resto, em formaturas, aos grupos, esperando nas suas carrinhas azuis, aqui e além, lá me acompanharam durante anos, os figurões do capacete e da Mauser. Mais tarde modernizaram-se. Mas não foram esquecidos”. Como não foram esquecidos os passeios que ele deu com a família pelo Alentejo, aquele Meccano nº 8, as leituras do cavaleiro andante, retomamos à vida clandestina, às lembranças da publicação do seu primeiro livro, não esqueceu um professor do Liceu Camões, Mário Dionísio, e dirá mesmo: “Ficar-lhe-ei grato para sempre pelas cautelas contra as armadilhas da escrita e pelo amor que me soube incutir na nossa grande literatura”. Que estupendo exercício da memória ágil, mais uma gema a acrescentar ao espantoso inventário literário de um dos nossos maiores escritores contemporâneos. UA-48111120-1
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