Por Mário Beja Santos ||| Foram norte-americanos e britânicos que revolucionaram uma literatura que já assentar praça em finais do século XIX, recorria-se fundamentalmente a detetives privados, homens com génio dedutivo, que, em percursos mais ou menos laboriosos, desenvencilhavam tramas bem urdidas pelo génio do homicida. Os EUA contaram com uma crescente audiência de leitores, surgiram revistas, hoje marcos referenciais deste subgénero literário, caso de Black Mask, enredos de assassínio, inquéritos por vezes tumultuosos, desmascaramento e punição. O género Black Mask era popular porque fazia eco de situações visíveis no quotidiano, entre nós passou-se a chamar o Romance Negro, podia envolver gangues, rufias, ladroagem na alta sociedade e sempre um expedito detetive iria dar-nos a satisfação de um portentoso desfecho final. É nisto, estamos na década de 1920 que surge Dashiell Hammett, homem dos 7 ofícios, chegou a ser contrato pela Agência de Detetives Pinkerton, terá sido aqui que ganhou vocação para criar heróis como Continental Op ou Sam Spade, representado no cinema por Humphrey Bogart no icónico O Falcão de Malta, realizado por John Huston. É a partir de A Maldição dos Dain, Dashiell Hammett, Coleção Vampiro, Livros do Brasil, 2022, que se vai sentir o sinal indicativo do revigoramento da literatura de crime e mistério. Hammett é de uma enorme riqueza descritiva, a sua paleta é inigualável a apresentar as figuras. Alguns exemplos: “A voz era inesperadamente severa, ríspida, embora os seus modos fossem bastante afáveis. Era um homem trigueiro e hirto, dos seus quarenta e poucos anos, esguio e musculado, e de estatura mediana”; “Tinha o cabelo ondulado como o do pai, e não mais comprido, mas de um castanho bastante mais claro. O queixo era pontiagudo, a pele muito branca e suave; das suas feições, apenas os olhos verde-acastanhados eram grandes: a testa, boca e dentes eram de uma singular pequenez”; “Recordava-o como um homem alto e esguio, de cabelo castanho-avermelhado, 32 anos, olhos cinzentos hipnóticos, uma boca larga bem-humorada e de desalinho no vestir; um homem que se fingia mais indolente do que era na realidade, gostava de falar acima de todas as coisas”… Havia neste período o culto de grandes declarações, e até o psicopata que vai estar por detrás de uma cadeia de crimes sempre sobre a presunção de que havia uma maldição dos Dain, já fisicamente reduzido a um escombro, terá direito a uma tirada nobre: “Hei de mostrar-lhes o meu corpo estropiado, sem um braço, sem uma perna, o peito e a cara desfeitos, uma ruína já teve suficiente castigo de Deus por todos os crimes cometidos. E talvez a explosão da bomba me tenha feito recuperar o juízo. Ou pelo menos me tenha curado da devassidão criminosa. Quem sabe, talvez até me torne religioso. Seria um espetáculo magnífico. E muito tentador, mas tenho de pensar antes de me decidir”. Ora este detentor de uma série de crimes irá fazer do seu julgamento um verdadeiro circo, será ele em pleno tribunal a separar todos os fios, a explicar como tudo começou, a declarar-se inocente por insanidade, a justificar, ponto por ponto, as razões dos crimes praticados. É o que se chama uma história muitíssimo bem contada, tudo começa com o roubo de diamantes e Hammett é bem ardiloso logo no primeiro parágrafo: “Era realmente um diamante a brilhar na relva, a meia dúzia de passos do caminho de ladrilho azulado, um diamante pequeno, de um quarto de quilate, quando muito, e sem armação. Guardei-o no meu bolso e comecei a esquadrinhar o relvado”. E encetado o inquérito, o detetive Continental Op pressente que há descrições atabalhoadas, ele fazia experiências em diamantes, parecia que tinha havido um roubo, a filha teria visto alguém na noite anterior, uma jovem bem estranha por sinal, todos estes depoimentos têm pouco acerto, o detetive reencontra um velho companheiro escritor que se prontifica a dar-lhe esclarecimentos sobre a vida de tão estranhas personagens, aquela jovem é afinal uma morfinómana, é apoiada por uma enigmática empregada, a jovem desaparece repentinamente, começam os crimes, aqueles experimentador de diamantes aparenta suicídio, a menina faz tratamento numa casa chamada Templo, aí há mais crimes, o experimentador de diamantes deixara uma carta a contar uma história de assassínios, de prisões e perseguições, começa-se a falar da maldição dos Dain, o detetive vai conversando com o escritor que parece pronto a fazer as suas interpretações, até o médico que trata a jovem morfinómana é morto, a jovem foge com o namorado e este também é morto, trata-se de uma obra marcada por uma talentosa cadência, amontoam-se as confissões inusitadas, salta-se de um plano para outro, o passado é sempre brumoso, entra-se num ritmo de caça ao homem a partir de um lugar chamada Quesada, a jovem morfinómana começa por dar imagem de ter praticado mais um crime, afinal não fora assim, vai morrer mais gente, até o detetive aposta em deitar a unha ao presumível criminoso, estoira uma granada e abre-se luz sobre a essência daquele crime. O detetive lembra à jovem morfinómana, quando ela reaparece, que não passa de um simples assalariado, incute-lhe a vontade de abandonar as drogas, há para ali uma atmosfera de grandes afetos e caminha-se para a solução final.
E aqui temos uma novidade, o criminoso perverso a quem dá o quadro explicativo de tudo o que até agora se passou, Hammett faz questão de desenhar o perfil do psicopata: “O súbito ódio por mim crescera, presumo eu, por saber que eu o considerava louco. Queria que o resto do mundo, ou pelo menos a dúzia de pessoas que representavam o mundo como seus jurados, pensasse que estava louco, e disso os convenceu, mas não queria que eu estivesse de acordo com eles. Enquanto o homem no seu juízo, que ao fazer passar-se por louco conseguira escapar ao castigo, tal como planeara, tinha, por assim dizer, feito troça do mundo. O facto de eu poder troçar dele era um ónus demasiado pesado pelo seu egotismo, embora fosse pouco provável que admitisse perante si mesmo que estivesse, ou pudesse estar, realmente doido”. Outra inovação na carpintaria de romance de crime e mistério é caber neste caso ao psicopata a descodificação de toda a montagem dos crimes, como é sabido este tipo de histórias de crime e mistério tem sempre um polícia ou um detetive privado a quem cabe revelar, por vezes num desfecho final capitoso, o que está por detrás daquele labirinto de problemas, alguns deles aparentemente insolúveis. Dashiell Hammett, tal como Raymond Chandler vão ser obreiros numa época dourada, haverá outra linha em que trabalham os dedutivos S. S. Van Dine ou Ellery Queen, este porventura afigura soberana, ainda hoje, deste subgénero literário que agora é dominado pelos horripilantes esquartejamentos nos crimes nórdicos, tão na moda. Por estas e por outras, é um regalo voltar a ler ou propor, sem hesitar, que se conheça a fundo a literatura de Dashiell Hammett. UA-48111120-1
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