Por Mário Beja Santos ||| É uma bela edição a que se juntou Publicações Dom Quixote, 2021, intitula-se Porque sois tão medrosos? Ainda não tendes fé?, envolve os acontecimentos que correram mundo inteiro naquele fim de tarde de 27 de março de 2020, o Papa Francisco decidira fazer oração no adro da Basílica de São Pedro, viam-se as imagens do líder religioso dos católicos a avançar para o altar, na enormidade daquela praça completamente deserta. Quem vê estas imagens desconhecia o que estava por detrás desta iniciativa. A pandemia avassalava comunidades inteiras. Sabia-se que o Papa abrira as portas da pequena Capela de Santa Marta que através da televisão ele procurava aplacar com o seu comentário o temor instalado em sociedades impreparadas para um rigoroso confinamento. Numa transmissão televisiva um capelão de presídio lançou publicamente um apelo ao Papa que desse um gesto forte, que pedisse a Deus uma oração de libertação. “Peço-te, Papa Francisco, faz um gesto planetário. Pede à Igreja que pare, pede ao mundo inteiro que fique ao teu lado. […] Tens o poder da palavra, tens o poder do símbolo. Faz-nos compreender que Cristo está presente nesse momento, dizendo-nos algo. Tu és a ponte para nós… Não nos deixes sozinhos”. Crentes e não-crentes acompanharam o vazio da praça e a oração do Papa, a sua caminhada debaixo de chuva, vendo-se ao fundo uns mirones e as luzes dos lampiões esfumadas, a nossa atenção foi retida pela solidão daquele homem que se apresentava sozinho diante de Deus, rompendo distâncias para dizer que estava com todos, como meses depois irá desenvolver no seu belo documento (carta encíclica) Fratelli Tutti, sobre a fraternidade e a amizade social. A oração vai girar à volta de um trecho do Evangelho de São Marcos em que Jesus e os seus discípulos estão numa barca e sopra um vendaval, quem está atemorizado questiona o mestre, este levanta-se e ordenou ao vento e ao mar que se calasse. E depois perguntou aos seus discípulos: “Por que sois tão medrosos? Ainda não tendes fé?”. Haverá reflexão sobre este medo, quem vem incitar à esperança e lembrar que está próximo dos outros olha e prostra-se diante de um Cristo milagroso e de um ícone de Nossa Senhora Salus Populi Romani, ele veio em oração para se juntar a toda a humanidade, quem mo está a ver tem a imagem que ele procura recorrer a Deus. O Papa está sozinho como todos nós estávamos metidos em casa, coisa misteriosa aconteceu ter-se dado uma bela representação da proximidade naquela atmosfera de densas trevas, daquele vazio desolador que se tem engastado nas nossas vidas. A escolha daquele barco de discípulos temerosos não terá sido um acaso, naquele barco estamos todos e quando o Filho de Deus acorda, porque dorme tranquilamente, é porque confia no Pai. A tempestade simboliza a nossa vulnerabilidade e põe a nu as falsas e supérfluas seguranças com que construímos os nossos programas, os nossos projetos, os nossos hábitos e prioridades. Os “eus” atomizaram-se com a tempestade, há que ganhar a fé, e a oração do Papa Francisco vai gradualmente caminhando para a proximidade, é um convite a ativar a solidariedade. E há o símbolo daquele abraço que ele dá à cruz como significasse que devemos ter coragem e abraçar todas as contrariedades, ajudando os outros, procedendo de modo mais inclusivo.
Esta bela edição retém os dados essenciais das orações ali feitas, há comentários, são registadas as tomadas de posição do Pontífice desde que se confirmou que estávamos a viver em pandemia. É tocante a carta que Francisco dirige aos sacerdotes da diocese de Roma em 31 de maio de 2020 e meses depois a vídeo-mensagem por ocasião da 75ª Reunião Geral das Nações Unidas, diz sem hesitar: “Não saímos de uma crise da mesma maneira: ou saímos melhores ou saímos piores. Portanto, neste momento crítico, o nosso dever é repensar o futuro da nossa casa-comum e do nosso projeto comum. Esta crise realça ainda mais os limites da nossa autossuficiência e a fragilidade comum e requer de nós uma posição clara sobre o modo como queremos sair dela: melhores ou piores. A pandemia mostrou-nos que não podemos viver uns sem os outros, ou pior, uns contra os outros”. As suas sucessivas mensagens e alocuções porão acento tónico num grande vírus, o da injustiça social, da desigualdade de oportunidades, da marginalização e da falta de proteção dos mais débeis. Insistindo de que não sairemos iguais de uma crise, refere noutro discurso: “Nós deveríamos sair melhores, para resolver as injustiças sociais e a degradação ambiental. Hoje temos uma oportunidade de construir algo diferente. Por exemplo, podemos fazer crescer uma economia de desenvolvimento integral dos pobres e não de assistencialismo. Devemos ir além e resolver os problemas que nos estimulam a fazer assistência. Uma economia que não recorra a remédios que, na realidade, envenenam a sociedade, tais como rendimentos dissociados de empregos dignos. Este tipo de lucro é dissociado da economia real, aquela que deveria beneficiar as pessoas comuns, e é também por vezes indiferente aos danos infligidos à casa comum. A opção preferencial pelos pobres, esta necessidade étnica e social que vem do amor de Deus, dá-nos o estímulo para pensar e conceber uma economia onde as pessoas, especialmente as mais pobres, estejam no centro. E também nos encoraja a projetar o tratamento do vírus, privilegiando quem tem mais necessidade. Seria triste se na vacina contra a Covid-19 fosse dada prioridade aos mais ricos! Seria triste se esta vacina se tornasse propriedade desta ou daquela nação e não fosse universal e para todos. E que escândalo seria se toda a assistência económica que estamos a observar – a maior parte dela com dinheiro público – se concentrasse no resgate das indústrias que não contribuem para a inclusão dos excluídos, para a proteção dos últimos, para o bem comum ou para o cuidado da criação. Há critérios para escolher quais serão as indústrias que devem ser ajudadas: as que contribuem para a inclusão dos excluídos, para a promoção dos últimos, para o bem comum e para o cuidado da criação. Quatro critérios. Se o vírus se voltar a intensificar num mundo injusto em relação aos pobres e aos vulneráveis, devemos mudar este mundo”. São alocuções que tocam em permanência na mesma tecla: o destino universal dos bens, a solidariedade, o amor e o bem comum, os cuidados com a Casa Comum. E foi neste contexto que surgiu a carta encíclica Fratelli Tutti, uma proposta para um novo mundo, e uma frase há que reter quanto à epifania da fraternidade: “Se não conseguirmos recuperar a paixão compartilhada por uma comunidade de pertença e solidariedade, à qual saibamos destinar tempo, esforço e bens, desabará ruinosamente a ilusão global que nos engana e deixará muitos à mercê da náusea e do vazio”. Compreende-se assim como esta mensagem é profundamente incómoda para radicais, ultraconservadores e populistas, que o próprio Pontífice verbera sem equívocos. UA-48111120-1
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