Por Mário Beja Santos ||| O romance O Nosso Jogo foi editado simultaneamente em vários países em 1995, foi muito saudado pela crítica, mas nunca creditado como uma das obras supremas de John le Carré; o tempo encarregou-se de fazer prevalecer esta literatura diamantina, pois a obra, mais do que um clássico da literatura de espionagem do pós Guerra Fria, possui uma arquitetura de excecional elaboração, com trama premonitória de todos as turbulências que iriam ocorrer no Norte do Cáucaso, após o esfarelamento do Império Soviético. Caso curioso, no pós Guerra Fria julgava-se que o tema da espionagem estava esgotado, passara à categoria de arcaísmo; e John le Carré encarregou-se de evidenciar que esse pós Guerra Fria deixava sequelas de não menor dimensão trágica: máfias financeiras, descontrolo e anarquia nos sistemas de informações e nos serviços de contraespionagem; a emergência de nacionalismos que iriam desestabilizar quadros geopolíticos e geoestratégicos até aí considerados como inquestionáveis, à prova de bala. Temos em O Nosso Jogo (Publicações Dom Quixote, 2021) espiões precocemente desempregados, considerados não recicláveis, mas uns permanecem agarrados aos sonhos do passado, as chamadas causas perdidas. Desapareceu um importante agente duplo e um agente secreto a viver uma reforma antecipada como próspero vinhateiro é interpelado pela Polícia. O romance arranca com este prodigioso inquérito policial, Tim Cranmer confessa nada saber por onde anda Larry Pettifer, agente duplo e professor universitário nas horas vagas numa tal Universidade de Bath, um profundo conhecedor de quem era quem na espionagem soviética. Todas as suas respostas aos inquiridores, saberemos mais tarde, estão inquinadas por mentiras de despeito e de sobrevivência pessoal, Larry roubara-lhe o seu pinga-amor, a jovem e bela Emma. Os Serviços Secretos Britânicos estão intrigados com a ausência inusitada de Larry, também um diplomata de origem inguche, o informador privilegiado deste agente duplo, sumiu-se. A organização romanesca de John le Carré é soberba, decorre numa extensa corrediça entre vários tempos do passado até àquele presente que suscita tanta inquietação à polícia secreta britânica.
Tim Cranmer é então chamado aos seus antigos serviços, depois de ter informado a visita policial, é criticado: “Você evita qualquer ligação com o Pettifer. Acha que o desaparecimento dele é totalmente normal. Mas isso preocupa-o tanto que não pode esperar para nos contar. Sabe que o Checheyev se reformou. Sabe que o Pettifer também. Mas suspeita que andem os dois a preparar alguma coisa, embora não saiba nem o quê nem porquê”. Tim reage: “O Larry foi mais do que o meu agente. Foi meu amigo durante um quarto de século e, além disso, era a melhor fonte de informações viva que tivemos. Era um daqueles agentes que constroem a sua própria sorte. A princípio, o KGB recrutou-o à sorte. Não era suficientemente importante para ser um agente de monta, não tinha acesso a nada que valesse um tostão furado. Ofereceram-lhe um salário irrisório, largaram-no no circuito das conferências internacionais, armado com um monte de informações emanadas do Centro de Moscovo, e ficaram à espera de que, com o tempo, ele chegasse a ser alguém. E chegou. Tornou-se o homem deles, localizador de talentos entre os estudantes de esquerda, marcando os futuros amiguinhos do Kremlin e largando papagaios de papel pelas conferências internacionais. Ao fim de alguns anos, graças ao Larry, estes Serviços tinham reunido e domesticado o seu próprio elenco de agentes comunistas, uns britânicos, outros estrangeiros, mas todos inteiramente nas mãos destes Serviços que, através deles, iam passando para Moscovo alguma da mais sofisticada desinformação da Guerra Fria e o KGB sem topar nada”. Tim resolve por sua conta e risco apurar a operação em que Larry se envolvera. Recorrendo a uma formulação que deixará o leitor sempre intrigado, é-se levado a crer que Tim assassinara Larry por lhe ter roubado Emma. Como fora possível que o diplomata inguche conseguira tão habilidosamente roubar fartos milhões de libras ao erário russo, com que fito? Qual a razão por que Larry colaborara com uma fraude de 37 milhões de libras? É numa atmosfera espantosa que somos induzidos a visitar o poiso secreto de Tim, onde ele guarda múltiplas recordações de tantos anos de espionagem, é no manuseamento de papéis e fotografias que começa a perfilar-se o ousado desaparecimento de Larry. A dinâmica do romance é um novelo que se vai desfiando, Tim conversa com espiões do passado, e junta dados, avançamos neste enredo cheio de suspense onde não falta nem o romantismo nem a tragicomédia, a soberba arquitetura do romance permite sempre ir ao retardador fornecendo novas facetas da personalidade complexa de Larry e das causas que ele defende, Tim vai percorrendo Inglaterra e cada vez ganha mais expressão de que algo se está a passar ou irá passar no Norte do Cáucaso. Com documentos falsos, Tim parte para Moscovo e consegue conversar com o antigo chefe da Checheyev, Volodya Zorin, que naturalmente caiu em desgraça e para os russos é um conivente com a fraude de 37 milhões. Um artigo de Larry desperta a atenção de Tim: “Os ossetianos são hoje lacaios de Moscovo, como o foram no tempo do comunismo e antes disso no tempo dos czares. No Sul, é verdade, os ossetianos perderam poder para os outros depuradores étnicos, os georgianos. Mas no Norte, a usa guerra de nervos contra os Inguches, na qual foram vergonhosamente auxiliados por unidades regulares do Exército russo altamente equipadas, são eles que surgem como verdadeiros vencedores”. É pois a causa inguche que atrai Larry, como ele escreve noutro documento: “São os Inguches o exemplo de tudo o que há de mais miserável no nosso mundo pós Guerra Fria. Durante toda a Guerra Fria o Ocidente se vangloriou de defender os fracos contra a força bruta. Mentira, vezes sem conta o Ocidente aliou-se à força bruta em nome daquilo que se chama estabilidade”. Tim ouve a voz de Checheyev, gravada por Larry, sem o inguche imaginar que estava a ser registado: “No dia 23 de fevereiro de 1944, quando eu estava a nascer e toda a gente se divertia no feriado nacional, a Inguchétia e a Tchetchénia eram declaradas criminosas por edital de Estaline e levadas para milhares de quilómetros de distância das suas planícies férteis do Cáucaso, para serem realojadas nas terras inóspitas ao norte do Mar do Aral. Beria e os seus acólitos vieram em carne e osso superentender o nosso realojamento… É como tirar um homem da Califórnia e realojá-lo na Antártida”. A dinâmica do romance passa a um ritmo avassalador, Tim vai chegar à Inguchétia, encontra-se com Checheyev e é aí que toma uma decisão, faz parte de um jogo novo da sua vida mas que ele assume foi do desaparecimento de Larry: “Não tinha um mundo para onde voltar e ninguém em quem mandar a não ser eu próprio. Ao meu lado estava caída uma Kalashnikov. Pondo-a a tiracolo, corri atrás dele pela encosta abaixo”. Tim decidira envolver-se na causa perdida de Larry. Um romance soberbo a todos os níveis, provavelmente o segundo grande título de John le Carré. UA-48111120-1
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