Por Mário Beja Santos ||| Este livro é um tesouro, tem joias de diferente quilate, para banquetes de festa ou pratos quotidianos, mergulha na antropologia, dá-nos conta de um trabalho entusiástico de recolha e análise daquilo que é verdadeiramente nosso, pilares de uma gastronomia e gastrofilia com certificado de origem, impossível gostar das coisas da mesa e não conhecer o seu conteúdo: A Vida Secreta da Cozinha Portuguesa, por Guida Cândido, Publicações Dom Quixote, 2020. Logo a síntese que a autora nos dá sobre livros de cozinha, matrizes para tudo quanto é peixe do mar e de rio, vem do açougue, da capoeira e da caça, que se colhe na horta ou é espoado, as muitas doçarias. Boias de sinalização para tudo quanto se chama pescado há desde as ameijoas a bulhão pato, caldeiradas e escabeches, sardinhas assadas, pataniscas e pasteis ou bolinhos de bacalhau, mas também enguias, lampreias e sável. No capítulo das carnes temos alcatras assados, cozidos, ensopados, iscas e tripas, alheiras, leitão, papas de sarrabulho e rojões, mas há lugar para cabidelas, canjas, arroz de pato, o capão e o coelho à caçador. Guida Cândido não se limita ao receituário, lembra quem escreveu sobre esta ou aquela iguaria, por exemplo falando do cozido à portuguesa, refere um texto de Ramalho Ortigão nas Farpas que narra um jantar, por ocasião do aniversário do rei D. Luís, em 1872, em que se havia jantado o cozido. Chasqueando sobre os entusiasmos da iguaria, escreve que os portugueses “rejeitam as ostras, querem o seu velho cozido pomposo e banal, grave e inepto, sem sabor e despótico, feito de carne do acém, com a capinha de gordura por cima, o chouriço, estando a um lado como um pajem severo e gordo, ao outro lado o toucinho oleoso e mole, bulindo e transpirando como um pregador varatojano; e em volta da travessa os frutos da terra – mais vis e mais desprezados que o boi – as batatas e as cenouras, prostradas a uma distância respeitosa. Amam o cozido, porque ele lhes dá uma lembrança saudosa, uma imagem simbólica da velha Corte, da velha política, do velho regime em que foram criados e em que viveram com o valor e com a honra”. Pode acontecer que o leitor seja cozinheiro, estudioso ou meramente lambareiro, estão-lhe reservadas surpresas, muito do que já digeriu e com exclamativas de satisfação podem ter preparativos diferentes, não me passava pela cabeça o manancial de ingredientes das tripas à moda do Porto, um dos meus referenciais de pitéus, depois tem dobrada, feijão-branco ou grão-de-bico, e para além dos dentes de alho, da cebola, da salsa, do sal e da pimenta, mete cravinhos, colheres de farinha, cenoura, frango, chispes de porco, uma talhada de presunto, um salpicão ou chouriço, pão e cominhos, hei de descobrir onde se faz este manjar tão profuso de odores e essências. Aprendi bastante com a canja de galinha, tem pergaminhos, não só os que vêm da Antiguidade Clássica, ou a Rota do Oriente, é a versatilidade do que se presta o manjar. Lembrei-me das sopas de peixe e logo atinei que não são singularidade nossa, com singularidade encontrei o arroz de polvo, tentado no livro Cozinheiro dos Pobres, de Michaela Brites de Sá-Carneiro, com data de 1901, é de crer que não tenha tido grande tradição, embora se saiba que era prática corrente o polvo seco. E logo me empolguei com o que Guida Cândido nos conta sobre o folar de carnes à moda de Bragança, quem diz folar diz bolo ou fogaça, e lembra-nos Aquilino Ribeiro em Terras de Demo: “Recebia-se a visita pascal na casa de fora. Sobre a arca, atoalhada do mais puro linho, apresentava-se o folar”. E logo somos transpostos para a massa sovada dos Açores e para o milho frito da Madeira, este mete couves, nabiças, água, sal, toucinho, pimenta, farinha de milho e azeite.
É verdade que o doce nunca amargou, e a autora dá-nos um estendal de pitanças doces, não podemos esquecer as iguarias que saíam dos conventos, e aqui temos trunfos que já entram na globalização, como o pastel de nata. É um longo percurso que começa na aletria de ovos, mais uma citação, desta vez O Primo Basílio, de Eça de Queirós, jantar em casa do conselheiro Acácio, a aletria é apresentada com as iniciais do conselheiro desenhadas a canela; inevitáveis o nosso arroz doce, o bolo de mel da Madeira, há quem insinue que tem proveniência inglesa, é verdade que tem farinhas de trigo, melaço, açúcar, manteiga, banha de porco, cidra de conserva, amêndoa, nozes, erva-doce e canela, mas tem o certificado de origem, mais ninguém faz este bolo de mel como os madeirenses. Encaro o bolo-rei mais como uma tradição, como manjar singular da nossa cozinha, já degustei coisas aparentadas noutras paragens, só que entre nós é obrigatório, da Consoada até aos Reis, é essa a sua marca de água. E como tenho direito a lembranças, lembrei-me das alegrias que ajudei a viver num lugar ermo durante a guerra da Guiné com a solidariedade da minha gente que me mandou coscorões, filhoses, compotas e marmelada, pão de ló e o inevitável bolo-rei que nos ajudou a atenuar as mágoas da distância, há mais de meio século também apreciávamos algo que não era exclusivamente nosso, mas que caía bem à mesa até com um chocolate quente, as broas de milho e as castelar. É claro que com aquelas viagens intercontinentais não vinham pastéis de nata e as rabanadas pesavam muito, o transporte aéreo era mais caro que os confeitos, mas lembro os sonhos e o meu cabo das transmissões, de nome António Fernando Ribeiro Teixeira, natural de Felgueiras, fez a calda e exibiu o pão de ló de Margaride. A autora apresenta fontes e bibliografia, estranha algumas ausências de vultos maiores de todo este império de estudo, como Maria Manuel Valagão, mas deve ser fruto do acaso ou mero descuido. Há que concordar com o que escreve José Bento dos Santos, fazemos nosso o elogio do prefaciador: “O contributo que Guida Cândido nos oferece com a publicação deste livro é fundamental para compreender a nossa história alimentar e, a partir daí, a própria formação do ‘gosto português’, que nos ajudará, mais do que qualquer outra variável, a preparar-nos para o futuro da nossa alimentação. A sua leitura é obrigatória e um exercício divertido e apaixonante de sapiência”. UA-48111120-1
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