Vasco Graça Moura, um exímio ensaísta que nos deixou muitas perguntas

Por: BEJA SANTOS –

A última obra de Vasco Graça Moura foi “A Identidade Cultural Europeia”, Fundação Francisco Manuel dos Santos, novembro de 2013. Graça Moura detinha diferentes valências para falar sobre o que escreveu, com propriedade, acutilância e até desencanto: foi um extraordinário tradutor de algumas das figuras mais sonantes da cultura europeia como Dante, Petrarca, Shakespeare, Racine, Voltaire e Rilke; foi camonista e o autor de “Os Lusíadas” tem lugar supremo nesta narrativa; comissariou exposições como as comemorações dos descobrimentos e a presença de Portugal na Expo 92; foi deputado ao Parlamento Europeu. A história da Europa era-lhe familiar e a problemática da identidade europeia perseguiu-o constantemente na política e na ficção.

Este ensaio mostra independência de espírito, num tempo em que se cantam hossamas a Jean Monnet e Robert Schumann como pais fundadores. Graça Moura refere a importância dos Encontros Internacionais de Genebra (iniciados em 1946), o Movimento Europeu, inicialmente presidido por Winston Churchill; e os países da Europa de Leste nunca esqueceram, no período das ditaduras comunistas, a história comum de todo o continente, que também lhes pertencia.

A CEE nasce para trazer a paz a velhos contendores, é o momento do renascimento económico, foi-lhe poupado o encargo dos gastos armamentistas que ficaram do lado da superpotência protetora, os EUA. O que foi prosperidade, Estado Social, derrube de tensões entre países poderosos, e uma radiosa sociedade de consumo, é hoje um antro de rivalidades e rasteiras. Na cúspide da situação, teremos um responsável de monta, o Tratado de Lisboa e o seu manual de instruções (Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia), que está ao serviço dos mais fortes, bloqueia o funcionamento harmónico do conjunto e prejudica tanto o sentimento de pertença à Europa como a própria existência da solidariedade. A Europa deixou de ser o Eldorado mítico que foi durante muito tempo. O autor lembra outras debilidades como o pesadíssimo Parlamento Europeu, com os seus regulamentos e tropismos sistematicamente empatativos, e não só.

É na noção de cidadania europeia que podemos encontrar os traços comuns que revertem para a identidade cultural, como também a herança cultural aponta para os valores que enformam a identidade europeia na sua máxima amplitude. Que temos de comum? A cultura greco-romana, um classicismo que alimentou criadores como Dante e Petrarca, Ronsard e Camões, Shakespeare e Racine; a tradição judaico-cristã, a existência de uma memória europeia que mistura a simbologia cristã com elementos pagãos; a civilização do Mediterrâneo, a viagens das ideias e da técnica, a captação de Averróis e Avicena, a vanguarda espiritual e técnica do islamismo foi assimilada, com uma arquitetura romana ou o direito romano; e esta identidade europeia cresceu com as viagens transoceânicas e com a era dos imperialismos de génese europeia.

Há, pois, como observa Graça Moura a identidade cultural associada a lugares sagrados, de Compostela a Roma e à Terra Santa; aos lugares no tempo, aos momentos fundadores: Antiguidade, Renascimento, Reforma, Século das Luzes, Revolução, nacionalismos, imperialismos. A cultura camoniana e a obra do poeta expressão uma dimensão genial da identidade cultural europeia, Camões é poeta em cuja obra há um sentido geográfico, político e agudamente crítico da Europa enquanto Cristandade. É recordar o Olimpo de Camões, combinado com a epopeia clássica e o maravilhoso medieval, com os processos narrativos da canção de Gesta, a exaltação do novo tempo que se abria para a humanidade. E ficamos diante da herança cultural, um sistema que coloca em permanente interação obras de arte, monumentos, dimensões religiosas e profanas, testemunhos literários, cénicos e musicais, valores arquitetónicos e artísticos… Património, paisagem, quarenta línguas quotidianamente faladas. Um património cultural tão vasto e diversificado que pode oferecer possibilidades de criação de emprego, indutor de turismo, inovação científica e disseminação de obras de arte e intercâmbio artístico.

Mais que um balanço, o que move Graça Moura é a análise do presente para o futuro, parte do tempo de crise, da adversidade demográfica, do pluralismo e tolerância em democracia, não esconde a consternação pelos indicadores do desemprego e os desafios prementes da segurança e defesa contra o terrorismo fundamentalista que ameaça a Europa a Sul e a Sudeste. Recorda o ideal educativo grego, a paideia, essência da verdadeira educação que dá ao homem o desejo e a ânsia de se tornar um cidadão perfeito. A laicização é um paradigma da vida moderna, mas não arreda os valores de inspiração humanística que estruturam a civilização europeia.

Antes da identidade cultural há que posicionar a identidade europeia, e Graça Moura escreve: “A Europa é a unidade civilizacional de largo perímetro geográfico que há mais tempo e mais profundamente se interroga sobre si mesma, questionando não apenas a sua ação como as suas caraterísticas mais relevantes”. E daí a dinâmica que leva à identidade cultural, e ele enumera a pluralidade de fatores que Jacques Le Goff utiliza, desde a noção grega do pensamento e da democracia, passando pela Revolução Industrial, a Declaração Universal dos Direitos do Homem, os horrores do totalitarismo no século XX, a descolonização, a União Europeia, a queda do Muro de Berlim. A cultura aparece associada à arte, à arquitetura, à filosofia, às grandes correntes do pensamento. O menos que se pode dizer é que em nenhuma outra área do mundo ocorreu algo de semelhante, esta arte românica e gótica, este Renascimento, este maneirismo, esta arte do século XX, são sinais de identidade e foram transmitidos, com maior ou menor intensidade, para todo o globo.

A Europa de hoje, com a sua diversidade cultural e linguística, vive confrontada com o processo de construção europeia, com a união e económica e monetária, com o regresso do confronto entre os grandes e o tumor do peso da Alemanha. A União Europeia é uma realização notável, mas com sinais preocupantes de oscilação porque é um gigante económico e um anão político, a vida europeia está cada vez mais centrada em torno da crise internacional e das crises nacionais.

Por último, Graça Moura discreteia sobre o papel da cultura, o papel do Estado nas políticas culturais e o saber defender por toda a Europa um certo conceito de identidade, atender às especificidades. O conceito de identidade implica uma noção de permanência, ter em conta as diferenças étnicas, geográficas, linguísticas, históricas e outras, até porque uma identidade nacional não surge do nada, vai-se construindo com novos elementos que o tempo acrescenta aos que já lá estavam. Em síntese, a identidade cultural europeia está sujeita às interações sucessivas e nós não podemos prever o resultado. “Mas podemos esperar que alguma parcela importante sobreviverá dessa herança que nos é transmitida e que devemos ajudar a preservar e enriquecer, uma vez que constitui uma marca determinante e indelével da evolução do mundo”.

Um belíssimo ensaio, esta sua última obra. Um testamento que é um olhar sobre a Europa e a cultura, onde tanto lavrou o seu campo de letras.