Por BEJA SANTOS – Uma das poucas semelhanças entre os gigantes literários e as categorias de escritores que vão pela escala abaixo é a (quase sempre) triste sorte que está reservada aos chamados escritos esparsos, uma categoria muito diversificada onde cabem prefácios, posfácios, comunicações espúrias, artigos de jornais, teor de entrevistas, e algo mais. Desta desvalorização perante os auditórios se podem queixar um José Saramago, um Oscar Wilde ou um Jean Cocteau. Deste, a Sistema Solar publicou em Março com tradução e apresentação de Aníbal Fernandes um conjunto de textos de rara beleza que só servem para alevantar a categoria de um génio que se dispersou pelo teatro, pelas artes plásticas, não se eximiu à atração musical e à poesia sublime: Visão invisível.
OPINIÃO DE Beja Santos – As ciências da ecologia cedo se impuseram pelos seus apelos à ética e à responsabilização. Quando, no início dos anos 1960, Rachel Carson denunciou os perigos de pesticidas como o DDT, com o seu best-seller “Primavera silenciosa”, estava não só a lançar as bases científicas das ciências do ambiente como a despertar uma nova dimensão da cidadania que foi gradualmente manifestando-se nos longos e intensos debates sobre a globalização positiva ou negativa, o consumo ético, o consumo responsável, a responsabilidade social, o comércio justo, o bem-estar animal, os financiamentos sustentáveis e a banca ética, o desenvolvimento sustentável, em suma. Assim se foi enveredando pelo paradigma ambiental e a considerações sobre o bem que podemos fazer para melhorar a nossa relação com os outros e o planeta: não maltratar e praticar um altruísmo eficaz, tese muito cara ao pensador Peter Singer, patente no seu último título aparecido em Portugal “O maior bem que podemos fazer”, por Peter Singer, Edições 70, 2016, Neste seu último livro, Singer retoma o tema de obrigação de ajudar num contexto de movimento social, e designa esta corrente por altruísmo eficaz, que ele assim categoriza: “O nosso ver fundamental consiste em fazer sempre aquilo que resulte nas melhores consequências – e as melhores consequências, por sua vez, correspondem sempre àquela situação em que há um maior bem-estar global”. Trata-se de um ensaio onde se discreteia sobre como devemos fazer o maior bem que podermos. Manuel Alegre viveu o exílio, redigiu comunicados e proclamações, esteve à frente de emissões radiofónicas em Argel, conheceu os códigos da clandestinidade, regressou e manteve-se na política e na escrita, está sempre em regresso. Vem agora em “Uma outra memória”, Publicações Dom Quixote, 2016, com uma reunião de textos que se encontravam dispersos, confirmar a destreza que ganhou no passado, nesses textos curtos que deviam ser retidos quase como palavras de ordem, como verbos de combate, mensagens portadoras de um timbre declamatório, por vezes um tom manifestamente épico, uma voz de camarada para camaradas, cumplicidade das letras, um alerta para o Norte dos princípios, uma lembrança de jovem octogenário para outros portadores de sonhos. Não será por acaso que o subtítulo da obra inclui “A escrita, Portugal e os camaradas dos sonhos”. São peças breves, outras curtíssimas, mas com sabor imemorial. Veja-se a recordação guardada de Mário Cesariny: “Escreveu alguns dos poemas maiores da poesia portuguesa. Encontrei-o, pela última vez, uma noite no Príncipe Real. Trazia uma capa preta pelos ombros. Parecia o Príncipe das Trevas, mas não era, porque dele irradiava sempre uma luz”. Traça quadros vigorosos dos seus camaradas de escrita e faz poética, fá-los grandiloquentes, mediúnicos, dançarinos astrais. Sobre Miguel Torga: “Não sei se quando Torga se debruçava sobre o Mondego olhava apenas as suas águas. Talvez se debruçasse sobre os grandes rios do Mundo e os outros, mais obscuros e profundos, da sua imaginação. Ou talvez se debruçasse sobre si mesmo, sobre as perguntas que constante e dolorosamente se fazia e constituem o cerne da sua escrita. Creio, aliás, que era assim que ele entendia a literatura: uma arte de perguntar, mesmo que não se encontre a resposta”. Chamou feiticeira Cotovia a Natália Correia e redige empolgado, fala dela como uma ausência que dói, e dita-lhe admiração imensa: “A poesia de Natália é uma das raras poesias fundadoras. Porque sendo moderna, entronca na grande tradição lírica portuguesa. Porque sendo fiel à raiz, foi profundamente transgressora e cantou a dimensão ‘transportuguesa’ de Portugal. Nas décadas subsequentes à descolonização portuguesa foi nítida a indecisão dos artistas plásticos no tratamento da matéria colonial, incluindo o cortejo das guerras e o sofrimento que provocou. Quem arrebitou primeiro foi a literatura, a começar pelos antigos combatentes, basta pensar em Manuel Alegre, António Lobo Antunes, Martins Garcia, mas não esquecendo Lídia Jorge e os escritores africanos. Deu-se a seguir a afloração da investigação histórica, trabalho difícil atendendo à carga emotiva fortíssima daqueles que consideravam que a descolonização fora tudo menos exemplar. Hoje, são consideráveis as obras de mérito sobre a guerra, os teatros de operações e as análises retrospetivas sobre o adeus ao Império. É certo que houve o cinema muito mais cedo que a escultura, as instalações e a pintura. E, inopinadamente, foram aparecendo trabalhos e a curiosidade pública respondeu à chamada. Manuel Botelho tem vindo a distinguir-se pelas suas diferentes orientações na fotografia, na aguarela, na instalação. E Vasco Araújo revela-se imparável, é de uma curiosidade insaciável a explorar temas e apresentações reportados ao colonialismo. Acresce que manipula vários saberes com mestria no campo das ciências sociais e humanas. O livro “Demasiado pouco, demasiado tarde, Pintura, escultura, fotografia e filme”, Sistema Solar, 2015, corresponde ao trabalho apresentado no Centro Internacional das Artes José Guimarães, em Guimarães. O artista explica-se nas suas motivações: interessa-se cada vez mais por exposições contextualizadas com outros objetos, com outras peças vindas de outros contextos, objetos e lugares alegóricos, e na exposição de Guimarães cruzam-se fantasmas e a história, catadupas de plantas e jardins, coisas domésticas que remetem para o íntimo, tecidos de decoração, uma mesa de sala de jantar. E há o vídeo, objetos a falar, retratos, estátuas africanas. BEJA SANTOS – Enquadrados pelo discurso abreviado dos telejornais, submetidos a uma ditadura branda de frases feitas, capturados por um discurso político preparado pelos construtores de imagem, fomos amestrados para olhar para a literatura, o ensaio e a biografia como produtos de comida rápida. Em boa hora se edita Guy de Pourtalès, nome sonante na francofonia, tendo-se distinguido no período entre as duas guerras por biografias onde couberam compositores musicais como Franz Liszt ou Chopin, Wagner ou Berlioz, nunca escondeu a sua atração pela Europa romântica. Os seus relatos são dominados pela linguagem sensorial, pelo sentimento da paixão, há neles o prazer da escrita que tantas vezes confunde o biógrafo com o romancista, que também o foi. Como escreve na apresentação Aníbal Fernandes, este seu trabalho sobre o Luís II da Baviera foi reconhecido como primeiro a revelar um pouco mais do estranho homem que ficou na História como idealizador de castelos mirabolantes e pela sua paixão por tudo quanto Richard Wagner compunha. O que mais fascina ao ler Luís II da Baviera é sentir que o biógrafo quer intimidade com o leitor, são conversas demoradas, há um pacto de cultura, o leitor não pode ser defraudado, tudo quanto lê é um enriquecimento que decorre da investigação e das oficinas da boa literatura. E a tradução de Aníbal Fernandes faz o resto. BEJA SANTOS – “Memórias SOMânticas”, é o mais recente título de Abdulai Sila, Ku Si Mon Editora, 2016. Até agora, dava como dificilmente ultrapassável a obra de Filinto Barros “Kikia Matcho”, a dolorosa narrativa de um combatente que tudo dera para ter uma pátria e que depois o ignorou. Aqui há uns anos, fui procurado por uma antropóloga alemã, Tina Kramer, que me veio pedir ajuda para a sua digressão na Guiné-Bissau, pretendia recolher depoimentos sobre a reconciliação nacional e o sentir dos combatentes do PAIGC passadas estas décadas. Procurei ser útil, e a Tina partiu levando como intérprete e motorista Abudu Soncó, meu irmão no Cuor. Passaram-se os meses, e eu ansioso por conhecer os detalhes desta pesquisa em ciências sociais. A Tina veio um tanto atarantada, o Abudu vinha em estado lamentoso com o que vira e ouvira. Tinham percorrido as profundezas do país, pedido para contactar gente que habitara em locais duríssimos, como Morés, a mata de Fiofioli, Kubukaré, em Sara – Sarauol. Houve gente que se recusou a falar ou pedia dinheiro, alegando miséria extrema; houve quem fez depoimentos a soluçar, perdera pais e irmãos, ficara com incapacidade, cedo o PAIGC os esquecera, a humilhação era tal que tinham que trabalhar para compatriotas que auferiam pensões vindas de Portugal… Não é preciso acrescentar mais nada. Por BEJA SANTOS – “Um sol esplendente nas coisas, cartas de Mário Cesariny para Alberto de Lacerda”, edição de Luís Amorim de Sousa, Sistema Solar, 2015, corresponde às cartas, postais e documentos que Cesariny enviou ao seu amigo Alberto de Lacerda. Carteiam-se entre Abril de 1962 e 2000, durante anos tratam-se por você, a intimidade fez o resto, a certa altura tratam-se por tu. É do domínio público que Cesariny foi um dos vultos maiores da poesia portuguesa da segunda metade do século XX, foi artista plástico de nomeada, mas tenho para mim que o Cesariny epistológrafo roça a genialidade: torce e retorce palavras e frases, faz prosa-poema, alaga-se em confidências, é irreverente, pedinchão, não esconde adorações, amarga-se com mediocridades, é cáustico, toda a sua coloquialidade tem um refinado sentido de humor. Estamos em Maio de 1965, fala dos abaixo-assinados: “Eu assinei não sei quantas dezenas, de papéis iguais ou pares desses. Nunca me recusei nisso, mesmo sabendo que coisas tais não levam coisa nenhuma, mesmo rindo a matar desses cordéis assinados que sempre ficam bem na árvore de Natal da polícia. Assinei nos alegres tempos do MUD, assinei mais tarde, acho que assinei sempre. E assinei porque sim, porque é impossível não assinar, porque não se pode não assinar. É feio. A isto estamos reduzidos. Eles lá permanecem na cadeia e nós permanecemos aqui decerto porque o presidente da República entendeu que aquelas assinaturas tinham a importância que tinham. Mas distingo entre a inutilidade destes protestos e a utilidade pessoal de fazê-los. Sente-se a pessoa mais limpa, parece que é entre papel e caneta, já que não há verdadeiro contacto entre caneta e país. Mas há que denunciar um dia, a gritos, esta ilusão: o limpar-se um de caneta em país onde a polícia impera”. Por BEJA SANTOS – “Menos que humanos, Imigração clandestina e tráfico de pessoas na Europa”, por Nuno Rogeiro, Publicações Dom Quixote, 2015, é um ensaio oportuno e esclarecedor que sai da pena de um analista com provas dadas nos assuntos estratégicos e na geopolítica. O autor apresenta a sua obra da seguinte maneira: “Este livro é sobre refugiados das guerras, das perseguições, das catástrofes, mas também acerca de massas que querem viver melhor e não podem circular regularmente para o destino. E ainda sobre deslocados dentro do próprio país, e apátridas, e traficados para os negócios da carne e do crepúsculo do espírito, e gerações que crescem em campos, sem noção de quem são e do que são. Sempre em trânsito, sempre parados”. Muitos deles são filhos das batalhas: de guerras civis sem regras (caso da Síria), da decomposição de um país (Iraque, Somália, Afeganistão), vêm de comunidades religiosas perseguidas (Nigéria) ou fogem de regime de partido único de perfil totalitário (Eritreia). Neste ensaio ouviremos repetidamente falar do ACNUR (Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados) e da avalanche migratória dos últimos anos. Há fugitivos que escapam a múltiplas forças, como nos recorda o autor: o regime de Assad, o Daesh, outras forças jihadistas, gangues locais, milícias estatais e antiestatais, grupos de autodefesa, combatentes estrangeiros; há os que fogem aos bombardeamentos aéreos, que se encontram encurralados e fogem de vinganças tribais. |
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Junho 2016
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