Por: BEJA SANTOS – “Além da Literatura”, por João Bigotte Chorão, Quetzal Editores, 2014, é uma obra rara de um proeminente crítico e ensaísta que não esconde os ardores pirotécnicos que lhe provocam certas aventuras espirituais centradas na escrita. Como torna claro na explicação constante da contracapa: “A literatura que não seja apenas exercício linguístico ou texto sem contexto persegue um alto objetivo: é uma aventura espiritual que, sem descurar a importância da linguagem e a circunstância histórica, se preocupa sobretudo com o destino do homem e o fim dos tempos. O debate de ideias pressupõe cultura e senso cívico, e nós somos um povo de apaixonados e repentistas. Não conversamos: discutimos. Temos fé e temos rasgo, e a fé dispensa da procura e o rasgo dispensa do estudo”. E assim parte de arremetida para nos deixar páginas sublimes sobre um santo do seu culto, Camilo Castelo Branco (sempre tratado por Camilo), mas também João de Araújo Correia, Toga, Papini, Mircea Eliade, são ensaios de procura e estudo, e onde palpita a fé e vemos acometido o rasgo.
Camilo é uma verdadeira labareda, só porque aqui se escreve sobre o autor do Amor de Perdição justifica medir a febre afetuosa de João Bigotte Chorão. O residente de São Miguel de Seide é medido em todas as suas contingências, iluminado por lâmpadas de todas as potências, tem corpo, estômago, humores, olhos coruscantes, vibração. E o que se escreve é a tal febre afetuosa que contagia o leitor. Alguns exemplos: “Um género em que Camilo não tem quase paralelo entre nós é na epistolografia, tanto pela sua dimensão como pelo seu caráter extremamente pessoal (…) Não são as cartas, as de Camilo, de refinado apuro literário como as de Eça, já com os olhos postos na posteridade, nem como as de Antero ou de Manuel Laranjeira, a expressão de um pensamento. As de Camilo são muitas vezes triviais e pragmáticas, como as de um homem isolado na aldeia que tem de recorrer a amigos citadinos para encomendar uma camisa ou um colete, uma caixa de charutos, papel de escrita, algum livro antigo num alfarrabista, uma obra de consulta para um trabalho entre mãos ou uma novidade literária. Mas, sem fazer literatura, a prosa e a verve de Camilo dão a esses assuntos domésticos não sei que inesperada graça. Em toda ou quase toda correspondência ouve-se um queixume de tantos males físicos e espirituais, vem ao de cima o temor da cegueira e da loucura, todo um sudário de homem crucificado”. Assim se exprime acerca do Amor de Perdição: “O Amor de Perdição, que já fez chorar, faz hoje rir as adolescentes pouco dadas a mórbidos sentimentalismos. Como podem elas, tão saudáveis, rever-se na fragilidade física de Teresa, mas bem forte em assumir uma paixão uma paixão cruelmente contrariada e eloquente nas patéticas cartas a simão. Na admirável Marina não veem as improváveis leitoras mais que uma campónia incapaz, por um complexo social, de revelar o seu amor a um rapaz bem-nascido que, ferido, ficou entregue aos cuidados dela. Tão tola – dirão essas eventuais e desinibidas leitoras – que ainda se prontificou a servir de correio entre Teresa e Simão. Esse amor calado – que será hoje motivo de riso – só se denuncia quando, já sem respeitos humanos se abraça ao cadáver do ‘fidalgo’ lançado ao mar”. Como se estivesse esmagado pelos volteiros linguísticos e a estrutura dramática de Camilo, o seu intérprete não esconde o fascínio pela viagem ao fundo da alma, há na obra de Camilo penitência, arrependimento, uma procura de Deus, tudo em desmesura, em situações limites, romances e novelas movem-se num palco que nos impele a um permanente questionário de como Camilo conhecia a cidade e o campo, o camponês e o burguês, o amor e o ódio, o bem e o mal. E assim cogitando, o crítico verga-se novamente perante o génio do torturado escritor: “O que nos convida sempre a ler Camilo, antes de mais, o seu extraordinário dom narrativo. Desde as primeiras páginas há uma história que nos cativa e, de tal forma, que já não conseguimos desprendermo-nos dela, envolvidos nas aventuras e desventuras das personagens (…) Camilo tem pressa de contar e rematar a sua ficção, por isso a prosa é corredia e apropriada ao que se propõe. Corredia mas não pobre, eloquente e opulenta sempre, pois não quer deixar os seus créditos por mãos alheias”. João Bigotte Chorão recorda o leitor outra escala pirotécnica do génio de Camilo: os prefácios a que se obriga nas sucessivas reedições. Joga ardilosamente para agarrar o leitor na primeira página: “Há aqui bacamartes e pistolas, lágrimas e sangue, gemidos e berros, anjos e demónios”. Camilo nunca se oculta, atira-se de frente quando quer atacar. Disfarça-se de humilde, quando necessário. O crítico recorda o prefácio à 2ª edição do Amor de Perdição, Camilo finge espantar-se do favor do público com que foi acolhido. Na 5ª edição faz outro prefácio, já mudou de tom e sublinha: “Volume, que descrevesse um amor de bem-aventuranças terrenas, seria uma fábula”. E o crítico comenta: “Ora, o Amor de Perdição de fábula não tem nada – é uma nua e crua tragédia”. É como se Camilo despertasse e acometesse o leitor em cada reedição, a sua verbomania impunha-lhe um comentário novo, um humor diferente em concordância com aquele estado de espírito. E daí a surpresa quando se bate à porta de um Camilo que se julgava conhecido e que nos colhe com uma onda de frescura. A singularidade deste Camilo é do pleno agrado de quem sobre ele escreve o ensaio: “Ele distingue-se dos seus confrades por não ser propriamente um escritor de ideias, mas sobretudo um escritor de sentimentos e ressentimentos, patético e lúdico, não raro vulgar e fora do comum, de uma brevidade telegráfica ou de uma larga eloquência. E qualquer que seja o registo e a dimensão, um raro domínio da língua, que conhecia e usava como poucos”. E temos o ambiente de Camilo, o mais pujante no seu dramatismo, São Miguel de Seide. O crítico e ensaísta parece estar de visita, afastando fantasmas enquanto percorre essa casa onde de modo algum ele encontrou a acalmia e a plenitude familiar. E vemos Camilo a falar do seu ambiente, antegozamo-lo: “A casa, onde vivo, rodeiam-na pinhais gementes, que sob qualquer lufada desferem suas arpas. Esse incessante soído é a linguagem da noite que me fala: parece-me que é a voz de além-mundo, um como burburinho que referve longe às portas da eternidade. Se eu não amasse de preferência o sossego do tumulo, amaria o rumor destas árvores (…)”. Todo este percurso é uma água-forte com desolação, humidade e frio; e, voltando à sua correspondência, ele irá pontuando todo o drama que foi viver em São Miguel de Seide e assistir à decomposição da sua própria saúde e a dos familiares. Mas o leitor seguirá para outros ensaios animado e prazenteiro, pela razão simples de que o ensaísta não esfria na variedade e sabor quando discorre pelos seus biografados, sejam médicos como Araújo Correia ou Torga que abancaram na escrita em grande banquete, ou até nomes que passaram para a obscuridade, como Joaquim Paço d’Arcos. Quando necessário, o ensaísta discorre sobre o idioma e deixa-nos páginas luxuriantes. Livro assim não pode ficar desmazelado, a apanhar pó nas estantes. É mesmo um além da literatura que nos deve acompanhar nesta aliciante viagem em que se escreve muito bem sobre o muito bom da escrita alheia. UA-48111120-1
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