BEJA SANTOS – Enquadrados pelo discurso abreviado dos telejornais, submetidos a uma ditadura branda de frases feitas, capturados por um discurso político preparado pelos construtores de imagem, fomos amestrados para olhar para a literatura, o ensaio e a biografia como produtos de comida rápida. Em boa hora se edita Guy de Pourtalès, nome sonante na francofonia, tendo-se distinguido no período entre as duas guerras por biografias onde couberam compositores musicais como Franz Liszt ou Chopin, Wagner ou Berlioz, nunca escondeu a sua atração pela Europa romântica. Os seus relatos são dominados pela linguagem sensorial, pelo sentimento da paixão, há neles o prazer da escrita que tantas vezes confunde o biógrafo com o romancista, que também o foi. Como escreve na apresentação Aníbal Fernandes, este seu trabalho sobre o Luís II da Baviera foi reconhecido como primeiro a revelar um pouco mais do estranho homem que ficou na História como idealizador de castelos mirabolantes e pela sua paixão por tudo quanto Richard Wagner compunha. O que mais fascina ao ler Luís II da Baviera é sentir que o biógrafo quer intimidade com o leitor, são conversas demoradas, há um pacto de cultura, o leitor não pode ser defraudado, tudo quanto lê é um enriquecimento que decorre da investigação e das oficinas da boa literatura. E a tradução de Aníbal Fernandes faz o resto. Primeiro, situar a Baviera, um país farto, idílico, em que Luís I, que quisera fazer de Munique uma nova Atenas, se perdera de amores por uma tal Lola Montez, o povo não gostou, suceder-lhe-á Maximiliano, é aqui que começará a história de um príncipe de conto de fadas, antes dos castelos que ele mandará construir. Estes príncipes alemães casam-se entre si, daí o sangue praticamente enfermo dos Brunswick-Hannover e Brunswick-Holenzollern. A Baviera já distingue pelos seus castelos, no romantismo o nome Hohenschwangau é referido como uma fantasmagoria que é obrigatório conhecer. É nessa corte que vive Luís e o seu irmão Otto. O príncipe herdeiro irá ouvir em 1861 duas óperas de Wagner, Tannhäuser e Lohengrin, tem 16 anos, nasce o fascínio que o acompanhará por toda a vida. Escassos anos depois, Luís é rei da Baviera. O jovem rei quer conhecer Wagner, convida-o e recebe-o no seu castelo de Berga. Sensível aos requintes da hospitalidade, Wagner, bem instalado e com uma generosa pensão anual, começa a trabalhar em futuros projetos. É neste contexto que surge a ópera O Navio Fantasma, e iniciam-se os preparativos de um trabalho fulcral de Wagner, Tristão e Isolda, estreada em 1865, é um triunfo apoteótico. Wagner vai preparando outras obras-primas e Luís exige que tudo quanto vai ser produzido merece ser ouvido na maior das intimidades. As intrigas, os cometários mordazes da imprensa ferem o jovem rei. O governo ameaça demitir-se em bloco, o rei adorador da música wagneriana ouve, em desespero, a sentença dos seus políticos: “Sua Majestade terá de escolher o amor e a felicidade do seu povo ou a amizade de um homem desprezado por tudo quanto existe de bom e saudável no reino”. Sem alternativa, Wagner parte para o exílio. Luís II é um rei de pendor absolutista e anda distraído, não consegue avaliar o que trama Bismarck, ele sonha com a unificação da Alemanha, prepara, passo a passo, a anulação da Baviera, Saxe e Wurttemberg.
Guy de Pourtalès vai tecendo a malha dessa relação tão complexa entre um monarca amante das artes, solipsista, e um Wagner que não olha a meios para construir um dos mais visionários e criativos espaços musicais de todos os tempos. Vejamos como ele descreve a antestreia do Ouro do Reno: “Depois de entrar no seu camarote, onde fica sozinho com Wagner, pede para apagarem as luzes. De resto, a sala quase vazia também está escura. Perante os dois poetas este último ensaio geral decorre com toda a perfeição e ele deixa o rei tão contente, que no seu regresso ao Ermitage ele acaba por consentir em atravessar a cidade”. É aclamado por uma multidão exuberante, mas o rei esquiva-se. O público tem autorização para no dia seguinte assistir ao ensaio da Valquíria. Luís continua a construir febrilmente castelos, e, Herrenchiemsee surge um castelo de fadas, assim descrito: “Uma fachada com 300 metros de comprido, furada por 23 janelas monumentais; uma escada com 35 metros e 13 de largura; um quarto de dormir com 14 metros; uma galeria com espelhos que chegam a 75, são os números que ele impõe aos seus arquitetos. O ouro e o mármore fazem profusão, os quadros são encomendados às grosas. Na galeria dos espelhos há 16 janelas e mais de 2 mil velas a refletirem-se neles. O quarto de dormir do rei é o que ele pode imaginar de mais precioso. Um trono único: a cama sob um estrado com uma balaustrada de ouro esculpido a cercá-la. Está coberta com a colcha bordada, que dá a 20 mulheres trabalha para 7 anos”. O rei cada vez mais isolado, Bismarck, a partir de Berlim, aperta o cerco. A dívida real cresce em espiral, o monarca isola-se, dá sinais de loucura, é destituído. Vai viver no castelo de Berga, pede para dar um passeio com um médico no lago de Starnberg. Aparecerão mortos, a flutuar, nunca se apurou o que se terá passado. Nesse preciso momento da tragédia, será visitado por outra figura trágica, a Imperatriz Sissi, a mulher de Francisco José: o filho ter-se-á suicidado, a irmã queimada viva, ela virá a ser apunhalada por um anarquista em Genebra. É o fim de uma época, está a nascer o II Reich, Luís da Baviera, romântico e absolutista, não tem lugar nesse mundo onde só Wagner será recordado. Uma narrativa admirável, ninguém poderá ficar insensível a esta sugestiva narrativa de Guy de Pourtalès. De leitura obrigatória. UA-48111120-1
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Junho 2016
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