Por BEJA SANTOS - Tome-se o ponto de partida e reconheça-se a originalidade que se propõe para a trama do romance: onze anos já passaram desde a partida das tropas portuguesas de Angola (10 de Novembro de 1975) quando é descoberto uma mina de ouro o atirador especial Afonso que ali se escondeu. É capturado, repatriado e passa a ter acompanhamento psiquiátrico. Este atirador especial combateu nos três teatros de operações e irá relatar ao psiquiatra as diferentes vicissitudes que passou durante a guerra colonial, como a percebeu. Quando o romance “Adeus África” caminha para o final, Afonso confessa-se: “Para que acredite em mim, tenho que lhe falar da minha adolescência, que foi em parte passada em Portugal. Eu era filho de uma família com boas posses e eles acharam que eu devia tornar-me o mais português possível. Então, mandaram-me estudar em Lisboa e foi parar ao lugar menos indicado que existia nessa altura na capital para formar a consciência de um angolano favorável á ocupação portuguesa. Tratava-se da Casa dos Estudantes do Império. A Casa era exatamente o contrário daquilo que os meus pais desejavam para mim”. Temos aqui o soldado esquecido a quem cabe a descrição horizontal da vida colonial, da guerra, da descolonização. Ideia que está a fazer caminho, no momento em que escrevo já vi nas livrarias o título de “O último retornado” e Barata Feyo acaba de escrever um romance sobre o último combatente português. A trama do romance de Céu e Silva propõe os ingredientes clássicos de que o narrador é o portador das confissões e se irão juntar outros convocados que conheceram o soldado esquecido. Trama mais aliciante não se podia esperar.
O desapontamento vai para a carpintaria que se apresenta pantagruélica em dados essenciais e não essenciais: há excesso de Foz Côa onde presumivelmente Afonso se enforcou, temos aqui um pretexto para a exibição de conhecimentos sobre pintura rupestre; intermitentemente, ouvimos a Rádio Futuro, são textos metafóricos sobre a complexidade das coisas da guerra, nem sempre é conseguido, provoca distração e quebra narrativa; o atirador Afonso parece falar como um autómato, ao longo dos meses, quer no consultório psiquiátrico quer nos passeios que dão na Praia da Caparica, o atirador tem a mesma toada discursiva, a mesmíssima carga emocional; a criação da figura dos gémeos, Martim e Afonso, que podia ter o condão de introduzir a dúvida de quem é que o psiquiatra verdadeiramente era fiel depositário de um testemunho ímpar sobre a guerra colonial, gera uma certa perplexidade, até porque os gémeos tinham estabelecido entre si uma relação truculenta… Céu e Silva não conseguiu controlar o caudal informativo que dispõe sobre a guerra colonial, que é impressionante, e afoga o leitor com figuras importantes e outras meramente residuais. O que podia ter sido um romance fabuloso, o primeiro, a pôr em grande ecrã um testemunho sobre as três frentes da guerra colonial, gera deceção. Tanto mais que o escritor deixa claro que “Sendo ficção, foi muito influenciado pela recolha feita de Norte a Sul de vários depoimentos de ex-combatentes que estiveram nos três cenários de guerra em várias funções. Testemunhos cotejados numa ampla consulta de investigações, teses, artigos, verbetes e textos digitais de vários autores nacionais, africanos e académicos estrangeiros; comprados com a leitura de textos da época para confirmar situações e recriar o ambiente vivido no Ultramar de forma mais fiel possível”. Não chega, um romance tem que ter sopro anímico. O uso de hipérboles como o incêndio do Chiado é curioso mas um romance é mais que uma tirada operática. A despeito desta enorme reserva, é reconfortante ver que subjaz a este romance uma preparação invulgar, onde o autor presta homenagem a colegas seus do jornalismo como Ryszard Kapuscinski, considerado um dos dez maiores repórteres do século XX: “Naqueles dias antes da independência de Angola eu convivi muito com um jornalista polaco que vivia no Hotel Tivoli. Chamava-se Kapu. Ele escrevia sobre o conflito entre os três movimentos pelo domínio da colónia portuguesa mas nos intervalos dava-lhe para filosofar sobre a realidade do que ocorria no território. Numa dessas vezes perguntou-me se eu tinha reparado que, desde que o Exército português partira, a grande maioria dos cães estavam mais magros e a desaparecer. Mas a história do Kapu que nunca esqueci era uma mais poética. Ele dizia que nascia uma outra cidade dentro de Luanda, e que era feita de caixotes com os pertences que os portugueses que abandonavam Angola queriam levar consigo. Até que houve um dia, como se navios de piratas tivessem saqueado Luanda, em que essas caixas foram embarcadas, levando dentro delas a cidade que os portugueses construíram durante séculos, como se deslizassem sobre o oceano à procura dos seus donos”. Um romance que não se pode ignorar e que deixa a esperança para um grande romance sobre aquela guerra colonial que, parece, não sairá o punho de quem nela combateu. UA-48111120-1
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