Levanta-se o problema da identificação dessas imagens, quem as lê quer saber de que lado põe as suas emoções, e as imagens de civis mortos e de casas demolidas podem avivar o ódio pelo inimigo, estamos a falar de imagens publicadas na imprensa ou vistas na televisão ou na internet.
Ser espectador de calamidades é uma experiência moderna, é uma das apostas da sociedade de consumo e da fábrica de notícias em que assenta o digital. O que nos obriga a ter que pensar que a consciência do sofrimento mudou de natureza pelo que é registado pelas câmaras e partilhado por bilhões de pessoas. Susan Sontag recorda-nos que em guerras com a da Crimeia, a guerra civil norte-americana e em todas as outras até à I Guerra Mundial o combate propriamente dito estava sempre fora da objetiva, eram praticamente anónimas. Agora as imagens podem ser tiradas no calor da batalha, e ser vistas se a censura militar o permitir. Tomámos partido por uma guerra quando a acompanhamos diariamente, foi o que se passou com o Vietname, os norte-americanos apanhavam o aceso dos combates enquanto almoçavam ou jantavam, mais do que o sofrimento a opinião pública passou a questionar a legitimidade de toda aquela fúria destruidora e a vontade indómita dos guerrilheiros. A ensaísta também medita sobre os predicados da fotografia: “É a única arte importante em que a formação profissional e anos de experiência não conferem uma vantagem insuperável em relação a quem não possua nem formação nem experiência (…) Quer a fotografia seja vista como um objeto ingénuo ou como o trabalho de uma artífice experimentado, o seu significado depende do modo como a fotografia é identificada ou falseada; ou seja, depende das palavras”. O fotojornalismo tornou-se uma realidade durante a II Guerra Mundial e as agências fotográficas apareceram logo após a guerra, caso da celebérrima Agência Fotográfica Magnum, em 1947, para onde convergiram aventurosos fotojornalistas freelance. A fotografia declarou-se uma missão mundial. Um outro aspeto que não se pode descurar, a natureza da memória da guerra. As vítimas, e em muitos casos as gerações seguintes, guardam tal memória, por que houve genocídio, carnificina, porque a guerra civil deixou feridas tremendas, porque há guerras que parecem inextinguíveis, como o conflito Israelo-palestiniano. Há guerras muito fotografadas, e outras, por vezes muito mais cruéis relativamente pouco fotografadas – é o caso dos massacres no Sudão, das campanhas iraquianas contra os curdos, da invasão da Chechénia pelos russos. Em que difere protestar contra o sofrimento de o reconhecer apenas? Susan Sontag faz-nos viajar na longa genealogia da iconografia do sofrimento, realça Goya e os seus Desastres da Guerra, um conjunto de gravuras que representam as atrocidades cometidas pelos soldados napoleónicos que invadiram Espanha em 1808. Só uma câmara pode embalsamar a morte que está a ocorrer, pessoas condenadas a morrer, imagens de uma guerra tecnológica como foi a Guerra do Golfo de 1991. Temos também o duplo poder da fotografia – gerar documentos e criar obras de arte visual, muitas vezes ao serviço da sociedade de consumo. Longo olhar sobre estes sofrimentos, a memória por vezes forçada a tanta violência. E Susan Sontag não deixa de os alertar que as imagens daquela guerra terrível, aterradora não têm o mesmo significado para quem passou por essas experiências tremendas, e assim termina o seu ensaio: “Não podemos compreender, não podemos imaginar. É o que sente obsessivamente cada soldado, cada jornalista, cada voluntário de organizações comunitárias, cada observador independente já alguma vez esteve debaixo de fogo e teve a sorte de iludir a morte que se abateu sobre outros ao lado dele. E têm razão”. Um ensaio excecional que excede a importância da dimensão fotográfica. UA-48111120-1
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Junho 2016
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