Uma escrita amena, com derivativos espirituosos, nada de rancores, não se pretende um estudo minucioso, qual documentário, sobre as vicissitudes porque passaram aqueles combatentes, não há para ali o tropel de patrulhas, minas e emboscadas. Que as houve, irão aparecer como um inventário histórico do BCAV nº 682, um anexo que não exige leitura obrigatória. Destarte, lá vão 600 mancebos para entre dois Congos. Antes, foram às sortes, esses moços nascidos em 1941 e 1942, um dia apareceu o carteiro com a guia de marcha e requisição para a CP os transportar para o quartel de destino. As peripécias da adaptação misturam o caricatural e o burlesco, é assim que se faz uma recruta por via da descoberta da socialização da caserna e da parada, a vida de quartel sincroniza-se por toques da corneta. Para que não subsistam dúvidas na cabeça dos netos, fica escrito: “Já sabíamos marchar, marcar passo, pôr em sentido, apresentar armas e até dar uns tiros com umas espingardas que já tinham andado noutras lutas. Era agora preciso cultivar cada uma dar artes apropriadas aos conflitos que nos esperavam. E como numa guerra nem todos andam aos tiros, uma vez que tem de haver quem faça a comida, quem cure as feridas, quem conduza os carros, quem faça reparações e até quem toque com a corneta. Eramos, então divididos, por diversos quarteis para tirar a Especialidade: de cozinheiro, de enfermeiro, de condutor, de corneteiro e por aí fora”.
Os netos e leitores adventícios têm direito a uma farta explicação sobre a definição de especialidades: “A maior parte ia para atirador, já que numa guerra a função principal é atirar. Uma espécie de caçadores que se pretendia fossem caçar uns indivíduos que, numas terras bem distantes, andavam lá a apregoar que aquela terra era deles, enquanto por cá se cantava em coro: É nossa. Um ou outro soldado, a quem não se encontrasse jeito para nada, era rotulado de básico, que era o mesmo que não servir para nada, mas quando se chegasse à guerra, logo se via, algum préstimo haveria de ter, nem que fosse na faxina”. É lá vão num quartel flutuante, o Vera Cruz, ali se tomou contacto com pequenas coisas trazidas de Las Palmas, isqueiros Ronson, relógios Cauny, máquinas fotográficas Canon, tabaco AC, até se cambiava a moeda de Angola. Desembarca ao largo de Cabinda, com direito a salto para um batelão. A peroração para netos prossegue, conta-se a história daquela terra encravada entre dois congos: “Cabinda passou para o domínio português em 1885, através do Tratado de Simulambuco, assinado por Brito Capelo e pelos príncipes, chefes e oficiais do reino de N’Goyo que declararam reconhecer a soberania de Portugal”. E começa a descoberta da floresta tropical. Os que foram para Massabi, mesmo junto da fronteira com a República do Congo, tiveram, primeiro que tudo, descobrir qual a zona que lhes competia defender, já que nas cartas estava assinalado um marco que definia a linha de fronteira, mas como a vegetação ali não pede licença para crescer o tal marco estava totalmente abafado. À força da catanada lá se foram abrindo umas clareiras e eis que um dia, toda a gente ficou a saber até onde podia ir sem passar para o outro lado. O marco era um gigantesco tronco de madeiro atravessado no caminho, a palavra fronteira estava inscrita em letras garrafais. Os autores falam do Dinge com a propriedade de quem ali assentou arraiais. Bem-humorados, os autores desfiam as suas histórias: o capelão, o tenente Esteves, adorava caçar pássaros com uma espingarda de pressão de ar; o soldado Orelhas ajudava na cozinha e cuidava do bem-estar dos porcos, da sua engorda, um dia teve uma repentina e foi parar à República do Congo, nunca se apurou a causa da fuga… seguem-se as alcunhas, a história de um casamento que estive previsto para um alferes, as férias passadas em Angola, visitou-se Luanda, Sá da Bandeira e Moçâmedes, e novamente a subir para Luanda passando por Benguela, Lobito, Novo Redondo e Porto Amboim. E havia as escapadelas até Cabinda, os negócios de bordel, tudo contado entre o pícaro e o hílare, para não ofender a sensibilidade dos petizes. E há histórias sobre animais, pois claro, cadelas e macacos, embora por lá aparecessem crocodilos bebés. A guerra também se fazia pelas ondas hertzianas, dá-se conta da propaganda da Rádio Brazzaville no dia 18 de agosto de 1965. E há histórias de lavadeiras, como moçoilos vindos da Madeira e dos Açores engrenaram na máquina do batalhão e se mostravam felizes. E chegou a hora da volta ao puto, a mesma azáfama em entregar o material na unidade mobilizadora e partir para a família, tinham-se passado entre três a quatro anos desde que tinham saído de casa para assentar praça algures num quartel. E agora? Agora andamos por aí, somos reformados e temos netos para tratar. E de vez em quando encontramo-nos, como termina a história para encantar netos: “O relacionamento que mantemos tem o seu quê de peculiar, a e a forma de convivermos não tem paralelo com encontros que realizamos no âmbito de outras relações como as profissionais. Essa particularidade poderá resultar do facto de ser esta a única vivência durante um tão longo período e todos estarmos em condições idênticas durante todas as horas do dia. A partir de agora é só mais um esforço para continuar a andar por aí, a ler histórias de fadas, princesas e lobos maus aos netos, e quando eles perceberem que não existem fadas nem princesas – lobos maus nunca se sabe – contar-lhes que o avô andou na guerra”. Esta a magia da simplicidade, uma guerra pintalgada de humor cáustico e do deslumbramento de aprender a ser homem tirando partido da adversidade. UA-48111120-1
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Junho 2016
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