Por BEJA SANTOS – Foi uma noite larga como um rio, tão larga como o coração de um povo ou o voo de um albatroz sobre o sono das ilhas. Foi uma noite a desaguar numa foz de pétalas onde todas as vozes se juntaram, altivo coro, para dizer que nunca é tarde para a felicidade sentar à nossa mesa a herança de luz que a torna tão desejada, doce e rara. Até o silêncio se fardou de capitão para abrir a porta de armas a um cântico vindo do ventre fértil desta pátria com uma arca de palavras nascidas da lavra do nosso amor a tudo o que nasce valente e livre. Que idade tínhamos nessa madrugada que tudo prometia ser, deixando o medo refém de uma vida inteira de servidão e vénia ? Tínhamos a idade dos filhos que já tínhamos e dos que vinham a caminho, sem mácula, para que nunca mais se fechassem as portas que a coragem abrira à bênção do vento e do riso. Que idade tínhamos nós nessa noite, mãe de todas as noites que as feridas da guerra e do exílio cobriram com os panos ásperos do sal das lágrimas ? Tínhamos a idade de ser irmãos daqueles a quem, com a bravura das ondas, chamámos camaradas, na fraternidade de sangue que aduba os canteiros da paz. Que idade tínhamos nós nessas horas tecidas com o fio da incerteza que sufoca, que engrandece ? Passaram quarenta anos, tantos anos, por nós, pelos retratos, pela gaveta funda das lembranças, pelos olhos das mulheres e dos filhos, dos amigos que o tempo teimou em levar, traiçoeiro e sem aviso, só para nos castigar com o fel da imerecida ausência como se houvesse um preço a pagar por termos conseguido tornar, em Abril, Portugal feliz. Passaram tantos anos pelas páginas do livro que, por amor, escrevemos, enamorados de uma ideia, de um sonho, de uma maré indomável, porque éramos jovens e queríamos que a juventude não morresse no mato das ilusões desfeitas. Passaram tantos anos sobre as cicatrizes do chicote, da tortura, da ameaça, da injúria e nós permanecemos de pé, na reserva da tropa mas não na reserva deste pacto selado com o futuro. E mesmo cansados, nunca fomos tão jovens como hoje para proclamar, guerreiros da colheita adiada, que nos podem tirar quase tudo, menos o direito de, livres, dizermos que Portugal não se rende, desde Alcáçovas ao Largo do Carmo, desde o Terreiro do Paço às celas abertas de Caxias. E esses foram, que ninguém o esqueça, os dias únicos da glória de Portugal, notícia que nos devolveu o fulgor e a magia após tantos anos de dorso vergado nessa feira cabisbaixa de que falava o O'Neill e que reclamava o Portugal futuro do poema de Ruy Belo. Já passaram tantos anos e tão poucos, já fomos tantos e tão poucos, mas cada vez seremos mais, entrincheirados no quartel desta memória que renasce connosco sempre que dela fazemos estandarte desfraldado ao vento daquilo que ainda nos falta viver. E que ninguém se atreva a dizer-nos que a História, afinal, ficou por cumprir. Militares e civis, fomos nós que a escrevemos com as letras de seiva, sangue e espuma com que se escreve tudo aquilo que conta, tudo aquilo que fica, tudo aquilo que resiste. Já passaram tantos anos, mas foi ainda ontem, no manso clarear da madrugada, que mudámos o destino de uma terra e de um povo, como se disséssemos: “Todo o poder que queremos é a liberdade e a alegria de uma pátria livre. Nada mais”. No livro desta história está um capítulo em falta e há-de ser escrito por quem não esquece nem desiste. E que ninguém apague a luz enquanto houver lá fora gente à espera dos muitos nomes, vozes e rostos que este nosso Abril ainda um dia há-de ter. José Jorge Letria (do livro “Zeca Afonso e Outros Poemas para Lembrar Abril”, a sair em Abril) UA-48111120-1
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Junho 2016
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