Por Beja Santos - Biografia originalíssima, bem urdida, esclarecedora, sabe abraçar num percurso aliciante os quarenta anos do Ar.Co, uma escola alternativa que se empenhou, na fase final do regime de Marcello Caetano, em encontrar uma resposta a todos aqueles que não aceitavam (e não aceitam) o ensino convencional das Belas Artes e da comunicação visual. “NÃO, uma biografia do Ar.Co”, por Maria Antónia Oliveira, Sistema Solar, 2014, é uma viagem à génese e às vicissitudes do ensino ministrado no n.º 19 da Rua de Santiago, ali bem perto do miradouro de Santa Luzia e à escola de Almada. Primeiro, três saltos à vara na cronologia. Estamos em 1987, Anabela conseguiu levar de vencida um plano de estudos não convencionais, Desenho e Ourivesaria. Vemo-la a circular nesta escola alternativa, afanosa nas aulas do professor Filomeno. Vai até ao Bairro Alto, pelo caminho ficamos a saber mais o que é a escola e quem a frequenta: “O edifício principal da escola era um palácio perto do castelo de Lisboa. Acima do portão, lia-se a data 1682. Após um breve corredor escuro, um arco dava acesso ao pátio de empedrado antigo. À esquerda, um pequeno jardim com uma cisterna e um enorme jacarandá, dizia-se que o maior de Lisboa. O andar térreo, com várias portas para o pátio, albergava o departamento de fotografia”. Por ali pululam os alunos de Pintura, Desenho, Escultura e Fotografia, História de Arte, Ourivesaria. O Ar.Co arrendara anos antes, em 1985, a Quinta de São Miguel, no Pragal, para aí foram os cursos de Cerâmica, Escultura em Pedra e Vidro. Graças à Anabela, temos a atmosfera da época, as idas ao Frágil ou aos recém-abertos Três Pastorinhos, fala-se também no Gingão, no Rock Rendez-vous, fala-se em Mário Cesariny, em expetativas, acabam todos a dançar no Frágil.
Aqui salta-se para Dezembro de 2013, Mário é um professor da Ar.Co e conversa com um aluno, um rapaz de vinte anos encolhido num blusão de cabedal, que estuda Fotografia. Nesse dia haverá um lançamento do livro de fotografias de Fernando Varanda, no Ar.Co. Mário dá boleia ao jovem que quer ir para a Baixa-Chiado, entretanto numa gaveta descobriu fotos de 1973 ou mesmo de 1972, tem a ver com o Ar.Co. Vão conversando no engarrafamento do trânsito, Mário fica a saber que o pai do jovem fez Cerâmica no Ar.Co nos anos 80: “Quando o meu pai foi para Cerâmica aquilo estava a começar lá em Almada. Foi um dos primeiros alunos do curso. Ele era um teso, os meus avós não lhe davam abébias, trabalhava numa livraria no Rossio enquanto andava no Ar.Co”. É a viagem dentro da viagem, com muitas reviravoltas na memória: “Mário pensou na ironia de estar ali a ser quase consolado por um rapazote, ainda por cima com palavras que poderiam ser suas há muitos anos”. E quando se despedem entrega ao jovem, de nome Raul, as fotografias que encontrara sobre os preparativos dessa escola que nascera sobre a consigna do ensino livre. E retrocede-se a 1973, Manuel da Costa Cabral, pintor de arte, pediu autorização para o funcionamento de um Centro de Arte e Comunicação, onde, “a para do exercício do ensino, de índole teórica e prática ao nível médio, sejam efetuadas iniciativas que traduzam a problemática contemporânea da metodologia e da pedagogia”. Processo que se inicia em finais de 1972, junto a uns amigos em cafés do Campo de Ourique, Graça e Manuel Costa Cabral, Trigo de Sousa e Eduardo Nery. Fala-se nas viagens aos EUA, com o objetivo de conhecer aprofundadamente o ensino artístico não formal, são páginas interessantíssimas. E vemos artistas não conformados com o que se ensina nas Belas Artes e no IADE e que procuram uma escola mais imaginativa, como alguém deporá: “Não estamos aqui para dar diplomas, estamos aqui para formar artistas. Isto não será prejudicado de qualquer maneira, atendendo à conjuntura atual? Toda a gente quer ter um canudo. Eventualmente pode ter prejudicado, no sentido em que muitas vezes os pais não estão dispostos a pagar uma data de dinheiro, porque é caro o Ar.Co”. E outra pessoa dirá: “É uma escola que se escolhe, não é obrigatória. A pessoa sabe que o Ar.Co não dá nenhum diploma, não dá notas, portanto a única coisa que pode distinguir a presença de cada um na escola é se é bom ou não, ou se de facto aquilo lhe interessa”. Biografia tocante, com depoimentos espantosos. E percebemos porque o título é não, como alguém observará: “Eu acho que a mais forte afirmação é o não. E depois é tão afirmativo. Há uma tensão latente em tudo o que se faz no Ar.Co. Existe latente uma tensão que é imprescindível para que se mantenha a vitalidade. Houve momentos de grande intensidade. Isso é do melhor que há, dar uma chapada se for preciso, porque é fundamental que o Ar.Co exista em tensão”. Que forma talentosa para conhecer uma formação artística que ganhou créditos na sociedade portuguesa, uma escola que se transformou num original espaço de cultura e de ensino. UA-48111120-1
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Junho 2016
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