A lã com que teci é churra, mas nossa. É nossa a língua com balbuciei o que não pude expressar. São nossos os tipos do meu roberto. É nossa a madeira da minha barraca. São nossas as vistas que se descortinam do terreiro onde a levantei. É tudo português em mim. Se é defeito, hajam de desculpar. O amor à terra onde nasci e me criei é pecha que não incomodará ninguém por muito tempo”.
Em rigor, não aconteceu assim, existe em Peso da Régua a Tertúlia de João de Araújo Correia que comparticipa no relançamento da obra do ensino contista. “Manta de Farrapos” é feita de escritos de vária índole, a permanente surpresa é a língua portuguesa, a força cristalina de frases curtas e sucintas, a crueza sem ouropéis. Viaja até à terra-natal, o que vê é confrangedor, hoje seria mais, escutem-no: “O que se passa no meu torrão é o que se passa, a modo de dizer, em todas as aldeias. O êxodo de gente culta, para os meios grandes, deixa os meios pequenos entregues a uma triste plebe, desprovida de qualquer espécie de amparo. As boas casas, fechadas, sem fogo que fumegue, mais hostilizam o pobre do que o magoariam abertas de par em par. Representam, fechadas, o egoísmo ausente, alheio à desgraça por interposição de léguas de distância”. Como para Pessoa, a pátria de João de Araújo Correia era a língua portuguesa. Escreve sobre a boa escrita e a má pronúncia, e ao lermos esta prosa é como se um fantasma adejante estivesse a ver agora como escrevemos e pronunciamos: “O desprezo das provas orais, a maneira como o professor dita para que o discípulo não erre o ditado, esses dois males fazem de nós escribas meticulosos e oradores desastrosos. Sabemos escrever, mas, ai de nós, que não sabemos falar… O professor que dita èlemento fará que o aluno, quando for médico, faça uma conferência diante de gente culta, e abra a boca para dizer èlemento. O mestre que dita Hèrculano fará com que o aluno, em sendo homem, apedreje o Historiador, mudando-lhe o nome. E até fará do aluno burro, dando-lhe èrvilhas em lugar de ervilhas. Propus o outro dia que se acabasse com o ditado. Para ensinar a escrever, é suficiente a cópia e a redação. O ditado, pela maneira como dita o professor, é pai de monstros (…) Pesa-me não ser filólogo, mas, em compensação, folgo de ser sensível à honra ou desonra do meu idioma. Também a reflexão me leva a considerar que o ruir de uma ponte ainda vigorosa não é um fim natural. Comparo a minha língua a essa ponte como comparo o desabar da ponte à metamorfose fonética operada de um dia para o outro”. Vale a pena lê-lo com atenção: o que separa a língua portuguesa da brasileira, o uso de expressões inadequadas, os nomes abstrusos dos medicamentos, a exaltação de um falar de que seja natural, eivado pela originalidade e comenta não sem alguma aspereza: Por influência de traduções à letra, vulgarização de tecnologias, péssimo conceito de tradição e de revolução, o homem hodierno, ávido de novidades, cai no logro de aceitar comida avariada servida à mesa de uma cultura falsa. Prefere o pirotécnico ao fogueteiro, e se lhe cai um travo à burra, não leva a burra ao ferrador. Leva a burra ao siderotécnico”. Urbano Tavares Rodrigues considerou-o “amoroso lavrante da palavra em que constrói um válido monumento literário, artista pela profunda humanidade, com o talento epigramático e a bossa regionalista dos melhores parentes de Gil Vicente e de Camilo”. E assim é, é deste modo que vale a pena conhecê-lo ou relê-lo, como mestre maior da língua portuguesa. UA-48111120-1
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Junho 2016
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