Por BEJA SANTOS - Autor prolífico, com uma plasticidade que abarca o romance, a novela, o conto, o teatro e o ensaio, Mário de Carvalho possui um talento raro para observar o quotidiano, domina plasticamente, e dentro do mesmo discurso narrativo, a farsa, o burlesco, o pícaro, toca todas as teclas da emoção e radiografa com agudeza e pilhéria o mundo em que vivemos. Tenho para mim que a sua obra-prima é “Fantasia para dois Coronéis e uma piscina” que recentemente a Porto Editora reeditou, e que se revela como o mais inconfundível testemunho de uma era conhecida pelo cavaquismo, o tempo eufórico das autoestradas, da casa secundária, do triunfo do pato bravo, é o tempo dos fundos europeus e daquela mansidão em que a prosperidade (mais ilusória do que real) tinha tomado conta de nós. Este seu romance, aliás, arranca a um ritmo avassalador, é obsidiante e não dá tréguas ao leitor:
“Assola o país uma pulsão coloquial que põe toda a gente em estado frenético de tagarelice, numa multiplicação ansiosa de duos, trios, ensembles, coros. Desde os píncaros de Castro Laboreiro ao Ilhéu de Monchique fervem rumorejos, conversas, vozeios, brados que abafam e escamoteiam a paciência de alguns, os vagares de muitos e o bom senso de todos. Fala-se, fala-se, fala-se, em todos os sotaques, em todos os tons e decibéis, em todos os azimutes. O país fala, fala, desunha-se a falar, e pouco do que diz tem o menor interesse. O país não tem nada a dizer, a ensinar, a comunicar. O país quer é aturdir-se. E a tagarelice é o meio de aturdimento mais à mão”. Num país que prima pela enxúndia do falar, o autor desforra-se, as palavras que ele enumera ganham uma vibração muito própria do prazer em que assenta a muitíssimo boa escrita, assim: “Lá em baixo, na paisagem, incrustada na duríssima permanência das coisas, onde só mandam altos castelos, menires e cromeleques, destoa, azulínea, e sobressalta, com a transparência, a piscina, modernaça e tratada a poder de fluídos caros e especiosos. Plásticos e alumínios estão à vista, a formar, observando de cima, um cavo azul, espécie de olho-de-boi, desnaturado na paisagem, que é de prados e chaparrais, embalados por badalos espaçados de rebanhos que ecoam por valados e morrem, suavemente, nos arruamentos entre baixos muros de montes, corridos a barra amarela, janelame mínimo, para dar recato avonde e frescura. Ainda se fosse tanque de rega, rasaria aquela água um verde a condizer, de honrados limos, símiles de cobras-d’água, nenúfares e pousos escuros de sapos, cal dos rebordos macerada pelos musgos. Mas é piscina implantada conforme as revistas coloridas de muito longe mandadas, explicada por livros de instruções, em sete ou oito línguas”. Esta piscina irá ser o grande proscénio de dois coronéis e duas coronelas, algures na região de Serpa, coronéis que foram combatentes em África, numa aposentadoria simpática e tranquila. À sua volta irão cirandar figuras da nossa (ainda) modernidade: Emanuel Elói, que descobre água e joga entusiasticamente xadrez; Soraia Marina, adorada cantora pimba, meninas sôfregas de sexo; Nelson, o filho do coronel Amílcar Aires Dourado de Noronha Lencastre que a seguir ao 25 de Abril aderiu a uma organização chamada O Grito do Povo e muito pouco dada ao trabalho; e um personagem impressivo, a consciência. Todos fragmentados até a tragicomédia os ir conglomerando, haverá um caso espúrio de sexo entre uma mulher madura e o inocente Emanuel Elói, tudo parece descambar numa tragédia para acabar numa risonha suficiência à portuguesa. E há festas pelas aldeias, ricaços de recente extração com casas estereofónicas e a arca frigorífica cheia de camarão. Por ali anda o Portugal acalmado, o período revolucionário tornou-se uma reminiscência, o falajar é que está a dar como comprovam as diatribes entre o coronel Bernardes e o coronel Lencastre. E há descrições opulentas, como a casa de Januário, decorada pela Xuxu Montevedro e Castro, aquela sala é única como exemplar dos novos tempos: “Sensores invisíveis iluminavam profusamente a sala, descomunal, que fazia lembrar o átrio de um hotel de cinco estrelas, da Tailândia, com muitos sofás azuis às estrelinhas, muitos vidros foscos, muitas cortinas malva, muitos embutidos dourados e quatro lampiões enormes, em forma de fanal holandês, seguros por pequenas estátuas de madeira pintada, com profusas purpurinas, figurando conquistadores espanhóis, mamelucos e granadeiros escoceses”. O romance termina a modos que uma comédia de Gervásio Lobato ou de André Brun, o que está certo, pois este país não tem emenda. Romance de leitura obrigatória, é o mínimo que se recomenda. UA-48111120-1
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