![]() BEJA SANTOS - David Leavitt é nome aclamado da literatura norte-americana atual. “Dois Hotéis em Lisboa, Uma história de amor na Lisboa dos anos 1940”, Quetzal Editores, 2014, é o seu mais recente romance. Sobressai o registo da atmosfera, a Lisboa dos refugiados e a sofisticada relação de dois casais, Pete e Julia Winters, expatriados americanos e que tinham vivido em Paris, e Edward e Iris Freleng, também norte-americanos, criadores literário e boémios. Residem nos dois hotéis de nome Francfort, dissimulam mal a tensão e a total insegurança em relação a tudo. É um romance de enganos labirínticos, que se percorrem pastosamente, como na tragédia grega vai-se anunciando um clímax quando um navio se prepara para os repor nos EUA. Como tantos outros expatriados que vieram esbaforidos de França, cativa-os a mornidão, o ritmo pachorrento desta capital transformada em porto de abrigo. David Leavitt cumpriu a rigor o estudo desta Lisboa e vai desvelando o mapa dos pontos de encontro dos expatriados, abre espaço para os sonhos, deixa flutuar os silêncios e faz emergir dois amigos improváveis, deles irá brotar uma relação amorosa com sérias consequências. O fantasma do antissemitismo não povoa as conversas mas é um espinho angustiante que as consciências resguardam.
A ociosidade vai implicando os dois casais, desabafam sobre os seus passados, mas ficam a sobrenadar segredos, um deles aparecerá associado a um suicídio. Percorrem restaurantes, o casal que escreve livros, Edward e Iris Freleng desabafa sobre as motivações da escrita, Pete Winters disserta sobre a venda de automóveis em paris, em espiral os aspetos intricados destes dois casais com segredos paralelos caminham para a explosão, que não acontecerá, tudo se vai dissimulando com recordações do passado, com encontros de ocasião da gente que está em trânsito, há mesmo quem suponha que a guerra acabará antes do Natal. Os encontros homossexuais sucedem-se, Iris e Julia não protestam, é como se em tempo de calamidade houvesse direito a uma certa desordem ou desalinhamento, mais adiante tudo poderá vir a ser recuperado. Os dois homens contam segredos, as duas mulheres são mais contidas, estão mais ameaçadas. É uma escrita envolvente, elegante, os diálogos são admiráveis, aquela Lisboa, o último porto de onde é possível partir para a liberdade ganha forma, é táctil, plausível, com os seus ascensores, miradouros, tascas, bares e discretos bordéis. Sem surpresa, como um murmúrio que preludia uma trovoada, apercebemo-nos as razões porque Julia recusa partir, ela prevê um cataclismo à sua espera nas américas, por isso quer ficar, a partir de Lisboa Paris está muito perto. E aquela Lisboa é extremamente peculiar, regional e universal, até num passeio ao Castelo de São Jorge: “ Entrámos para os jardins do castelo. Disseram que entretanto já foram restaurados. Em 1940, raízes de árvores levantavam as pedras da calçada. As muralhas estavam a desmoronar-se. Roseiras altas floresciam entre ciprestes irregulares e jacarandás. Ao longo de caminhos empoeirados e através dos pátios, os pavões passeavam lentamente, uma dúzia deles, pelo menos. Mas, à exceção de umas ocasionais listas azuis ou verdes no peito, eles eram cintilante e quase ostensivamente brancos. Tinham pequenas barretinas brancas emplumadas e arrastavam as suas penas brancas atrás de si, como se fossem caudas de noiva. Além das aves, a única coisa para admirar era a vista, que me teria impressionado mais, não tivera eu estado no topo do Elevador [de Santa Justa]. O próprio castelo tinha um ar de decadência, como se séculos de chuva o tivessem lavado de qualquer resquício ou presença humana”. Há igualmente o romance dentro do romance, o casal Freleng irá aproveitar episódios passados em Lisboa para escrever “O inspetor Voos no Hotel Francfort”, e David Leavitt dá-nos uma descrição assombrosamente plausível, encaminhamo-nos para o desfecho, o navio Manhattan aportou Nova Iorque, os amantes separam-se para sempre, hoje correspondem-se, mantêm as cinzas como se pudessem ser ateadas. A passagem por Lisboa é recontada com nostalgia: dois hotéis com o mesmo nome; dois casais assombrados; um casal de escritores de livros de detetives que tenta permanecer ignorado, catapultando uma enorme fantasia naquela vida de expatriados. Uma grande subtileza que levou um crítico do Washington Post a observar que estas manipulações urdidas por Leavitt têm ecos de Henry James nas histórias de fracasso de americanos no estrangeiro. Um livro admirável. UA-48111120-1
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Junho 2016
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