Por BEJA SANTOS – Duvido que haja no nosso olimpo de escritores alguém que redija com a plasticidade de Mário de Carvalho: a sátira vizinha do surrealismo; a incursão pelo mundo do classicismo; a aventura histórica; o folhetim; o grotesco da guerra, mesmo imaginando cenários fictícios da guerra colonial portuguesa; a atmosfera espirituosa e o pensamento espúrio de certa esquerda nacional; as crónicas de costumes e a tragicomédia de certa burguesia que só descobre o ridículo quando se revê neste espelho de leitura, mas há mais, muito mais. Em boa hora se reeditou “A paixão do Conde de Fróis” que já conheceu cinco edições desde 1986, desta feita a edição é da Porto Editora, 2015. Estamos perante um romance histórico ou uma metáfora. Estamos no século XVIII, em tempos de despotismo esclarecido, reina D. José I, mas quem governa é o Marquês de Pombal. O desassossegado Conde de Fróis Júnior meteu-se num desacato e arranjou-se uma punição branda, foi desterrado para a longínqua praça de S. Gens, algures na raia, não longe de Miranda do Douro. Quem era desassossegado tornou-se brioso, entrou na praça como comandante, fez obras, motivou a tropa e, inadvertidamente, aconteceu uma guerra que confrontou Portugal contra a Espanha e a França. O conde mostrou-se destemido, deu resistência ao invasor e de comandante considerado, quando as bombardas começaram a escavacar S. Gens, em crescendo, a população pediu tréguas, aquele ponto fugidio no mapa estava a dar uma resistência desproporcionada. E assim chegamos à metáfora, assim que houve circunstância, o povo de S. Gens libertou-se do seu herói pela calada, herói ficou e pode muito bem acontecer que na História esta celebridade em bravura não possa vir a ser associada à mais deletéria das traições. Como hoje se diz, a leitura é compulsiva, Mário de Carvalho é um carpinteiro da língua portuguesa e estamos num século XVIII em que a ossatura da língua recorda o passado. E depois há as descrições, os formatos, as atmosferas, o desenho das figuras. Basta recordar o retrato capitular que nos dá do Conde de Fróis, uma peça de antologia:
“Como era ele, então, de figura? Não era grande coisa e, em boa verdade, sobrava muito de caráter ao que tinha de corpo. Sobre o baixo, escanzelado, com o ombro esquerdo ligeiramente descaído, em consequência de uma justa de touros infeliz que lhe amassou as costelas e retorcei a clavícula, parecia ligeiramente disforme, com os braços de comprimento desmesurado e as pernas muito esguias, tortas e nodosas. O olhar era mortiço, cínzeo, parado, sonolento. A face magra comprimia-se abaixo das fontes, para recuperar espaço na zona da testa, larga e protuberante, a contrastar com o afunilamento apertado do queixo. Não havia peruca que lhe servisse, antes se dispunham tortas e indiscretas logo ao primeiro uso, deixando entrever, por debaixo, os cabelos cortados cerce, finos e arruivados. A boca traçava-lhe a cara, quase de extremo a extremo, semelhando para os menos prevenidos um sorriso que as mais das vezes não era de rir, apenas com a conformação erradia dos beiços finos”. É muito provável que a metáfora tenha picante na língua, o mesmo é dizer que incomoda muita gente este Conde de Fróis reajustado ao nosso tempo. Vai para S. Gens como forma de punição, identifica-se com o espírito de missão, autonomiza-se, o padre que o acompanha para o corrigir é disciplinadamente posto a só tratar as ovelhas do seu redil. O conde vive para a praça, tornou-a uma praça-forte, vai surpreender as forças invasoras que não suspeitam tal resistência indómita. O povo gostou mas não se compadeceu com os excessos, o conde foi feito herói mas S. Gens rendeu-se. E depois veio a hipocrisia, e assim termina o romance histórico: “Ainda não tinha chegado o Sol e já vastas bandeiras brancas ondulavam no alto da torre e em pontos salientes das muralhas. Alagon foi magnânimo. Não autorizou o saque à praça, recebeu o capitão rendido, concedeu-lhe palavras de consolo. O cadáver do conde jazeu, durante dois dias, em câmara ardente, na igreja. Na missa de corpo presente, a que Alagon assistiu, o capelão prestou ao jovem fidalgo um alevantado elogio fúnebre, repassado de tropos retóricos, em que a temperança, a virtude e a coragem eram comparadas às de figuras egrégias dos livros antigos. Houve muito quem chorasse. A cerimónia teve fausto e luzimento”. Cada um enfie a carapuça como mais lhe convier. UA-48111120-1
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Junho 2016
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