Malandros, mandriões, altruístas: Uma obra-prima literária sobre a amizade de gente marginal26/2/2021
Por Mário Beja Santos ||| O californiano John Steinbeck irá recorrentemente escrever sobre seres humanos explorados ou socialmente ignorados, viajando ao fundo das suas existências. São narrativas com fortes afinidades até na localização onde se encenam dramas e tragicomédias, será o caso de Salinas ou de Monterey, topografias afins onde um biólogo pode conviver amavelmente com as meninas do bordel ou um conjunto de malandros encantadores vive em grupo disfuncional e por vezes num elevado grau de dedicação ao próximo, há pequenos roubos, ternuras e brutalidades, mas o altruísmo campeia e triunfa. O Milagre de São Francisco, datado de 1935, foi o primeiro grande êxito literário daquele que será o Prémio Nobel da Literatura de 1962, agora reeditado por Livros do Brasil/Porto Editora, 2021. Steinbeck adianta no prefácio o que se vai ler: “Esta é a história de Danny, dos seus amigos e da sua casa. Quando se fala da casa de Danny, não se tem em mente uma estrutura de madeira coberta de caliça velha a desprender-se do emaranhado de uma antiga roseira-de-castela. Não, quando se fala da casa de Danny, subentende-se uma unidade cujas partes são homens, uma unidade de onde emanava a ternura, a alegria, a filantropia e, no fim, uma tristeza mística. É que nem entre a casa de Danny e a Távola Redonda havia diferença nem os amigos de Danny eram diferentes dos cavaleiros. Esta é a história de como este grupo se constituiu, de como floresceu e se transformou numa bela e sábia organização”. Uma ascensão e uma dissolução. Danny tem algo do Rei Artur, de Rolando e de Robin dos Bosques. A sua casa situa-se na colina, onde a mata e a cidade se interpenetram, não há ainda asfalto nem eletricidade, ali habitam os paisanos que Steinbeck define como uma mistura de sangue espanhol, índio, mexicano e diversas variedades de caucasiano, é gente que fala inglês e espanhol com um sotaque paisano. Combateu na I Guerra Mundial este Danny com mais dois amigos, quando regressou soube que o seu avô falecera e lhe deixara duas pequenas casas. Começa a convivência fraterna. Aquelas habitações são uma espelunca, mas vividas como salas de palácio. Detestam o trabalho rotineiro, quanto muito biscates, percorrem as praias e o que acham que pode ser vendável dá para comprar um garrafão de vinho, pede-se peixe aos pescadores. Por pura negligência, uma das casas que pertence a Danny arde até ficar em cinzas, Danny reparte a sua casa com os amigos. O vinho está sempre presente, naturalmente repartido.
E aos poucos vão aparecendo mais amigos residentes e vamos tomando conhecimento de pequenas roubalheiras, relações sexuais espúrias. Steinbeck dá-nos águas-fortes de toda esta atmosfera, consegue envolver o leitor nos seus cinco sentidos, um exemplo: “A tarde desceu tão impercetivelmente como a idade atinge o homem feliz. Ouro penetrou na luz do Sol. As águas da baía ficaram mais azuis e pregueadas pelo vento que soprava da praia. Os pescadores solitários que acreditam que o peixe morde durante a maré alta deixaram as suas rochas, e os seus lugares foram ocupados por aqueles que estavam convencidos de ser na maré baixa que o peixe engole o isco. Às três horas o vento mudou e pôs-se a soprar mansamente da baía, trazendo toda a espécie de cheiros das algas. Os pescadores, que nos sítios desertos de Monterey remendavam as redes, puseram de parte as agulhas e enrolaram tabaco nas mortalhas. Pelas ruas da cidade, senhoras gordas, em cujas pupilas havia o cansaço e a sabedoria que tantas vezes se veem nos olhos dos porcos, iam instaladas em poderosos automóveis a caminho do Hotel del Monte, a fim de tomarem chá e gin com soda”. E segue-se uma inspirada descrição da vida em Monterey. Entra no grupo uma das figuras mais espantosas da literatura, o Pirata, assim descrito: “Era um homem enorme, largo de costas, de barba serrada e tremendamente negra. Usava jeans, camisa azul e não tinha chapéu. Na cidade andava de sapatos. Quando estava perante qualquer adulto, havia nos seus olhos um retraimento, a expressão reveladora do animal que gostaria de fugir se se atrevesse a voltar as costas durante tempo suficiente. Devido a esta expressão, os paisanos de Monterey sabiam que a sua cabeça não tinha crescido com o resto do corpo. Chamavam-lhe Pirata por causa da barba. Todos os dias as pessoas o viam a passar pelas ruas empunhando o seu carrinho-de-mão com madeira resinosa de pinho até vender a carga. E, sempre atrás dele, apinhando-se uns contra os outros, seguiam os seus cinco cães”. O pirata junta diariamente 25 cêntimos, quer comprar um candelabro em ouro a S. Francisco por este lhe ter salvo um cão. Veremos mais adiante que se não houve milagre, talvez tenha havido visão ou imaginação. Ajudam-se uns aos outros, vivem miseravelmente, mas há alimentos na mesa e o vinho não pode escapar. Um outro marginal entra no grupo, junta-se a Danny, Dilon, Pablo, Jesus Maria e o Pirata, é Big Joe Portagee, ratoneiro e rufião, mas de uma inocência tremenda. Ele e Dilon viverão na floresta uma história espantosa, um dos melhores trechos do livro, quando andarem à procura de um tesouro e derem com um marco geodésico. O enovelado de situações mistura a caricatura com o sonho, caso de uma paixão de Danny por Dolores Engracia Ramirez em que ele lhe oferece um aspirador que lhe altera o estatuto social embora não sirva para coisíssima nenhuma pois não é a eletricidade, acabará por ser convertido em mais um garrafão de vinho. Haverá tragédias, naquela casa morrerá uma criança, prosseguem amores frustrados. Finalmente o Pirata irá à igreja e assistirá à missa onde se faz a exibição do castiçal comprado com o dinheiro junto durante 1000 dias, tudo está a correr muito bem até que os cinco cães entraram em fúria, tudo acabou numa certa zanga. Antecedendo aquele fenómeno a partir das décadas de 1950 e 1960 será designado por realismo mágico na literatura, John Steinbeck conta-nos a história de Teresina Cortez e a sua ranchada de filhos, tudo começou com o casamento com o Sr. Alfredo Cortez, até que este desapareceu, sucederam-se os filhos em série, homens dispostos a ser pais não faltavam, as autoridades descobrirão que aquela ranchada se alimenta de tortilha e feijões, o médico virá dizer que estava impressionado por todas aquelas crianças serem saudáveis. Do Milagre de S. Francisco aqui não se fala, o leitor que o leia e decifre. Esta fábula de homens de diversas origens cujos antepassados vieram estabelecer-se na Califórnia há centenas de anos, alheios às complicações do modo de vida americano culmina com a loucura de Danny que será alvo de um dos mais espantosos funerais que algumas vez na literatura apareceu. Este primeiro grande êxito de John Steinbeck é de leitura obrigatória, há algo de profundamente inspirador nestes homens que resistem com firmeza ao trabalho honesto, pequenos malandrins picados ao próximo e quando o seu elemento de referência desaparece o grupo dissolve-se na escuridão, fim da parábola, uma enorme beleza a que não podemos ficar indiferentes. UA-48111120-1
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