Por Mário Beja Santos ||| Com a concordância do jornal, criou-se uma secção com a seguinte especificidade: leituras do passado que não passam de moda, que ultrapassam por direito próprio a cultura do efémero, que roçam as dimensões do cânone da arquitetura, da estética e do estilo, tidas por obras-primas, mas gentilmente remetidas para as estantes, das bibliotecas públicas ou privadas. Livros ensinadores, tantas vezes, e injustamente, tratados como literatura de entretenimento. Antes de se tornar no Papa do existencialismo, em grande romancista e dramaturgo, teatrólogo brilhante, ativista de grandes causas, Jean-Paul Sartre foi criança, teve uma infância marcante, viveu num ambiente familiar tratado com desvelo e atribui àquela atmosfera de livros o gosto em tornar as palavras que leu na sua própria escrita. As Palavras, romance autobiográfico dado à estampa poucos meses antes de lhe ser atribuído o Prémio Nobel da Literatura, é esse estupendo exercício. Escavando a memória, libertando recordações, vai dar-nos essencialmente o que foi a sua infância no meio dos livros, no recato do meio familiar e como a leitura lhe definiu o modo de escrever, na pessoa em que se transformou. Dirá mesmo que “comecei a minha vida como provavelmente a irei terminar: no meio dos livros”. E adianta: “No escritório do meu avô, havia-os por toda a parte; era proibido limpar-lhes o pó, exceto uma vez por ano. Ainda não sabia ler e já reverenciava essas pedras erigidas; direitas ou inclinadas, robustas como tijolos nas estantes da biblioteca ou nobremente espaçadas em áleas de menires, sentia que a prosperidade da família dependia delas. Tocava-lhes às escondidas para honrar as minhas mãos com a sua poeira, mas não sabia bem o que fazer delas e todos os dias assistia a cerimónias cujo sentido me escapava: o meu avô – normalmente tão desajeitado que a minha mãe lhe abotoava as luvas – manuseava esses objetos culturais com uma destreza de oficiante. Vi-o mil vezes levantar com um ar ausente, dar a volta à mesa, atravessar a divisão em duas passadas, pegar num volume sem hesitar, sem se dar tempo de o escolher, folheá-lo ao voltar para a poltrona, com um movimento combinado do polegar e do indicador.”
Muito se fala da Alsácia Lorena, o avô domina fluentemente o alemão e o francês. A biblioteca é volumosa, a vida social era fluente, como Sartre observa: “Frequentávamos pessoas ponderadas que falavam alto e com clareza, baseavam as suas certezas em princípios sãos, na sageza das nações, e não desdenhavam distinguir-se do comum apenas por um certo maneirismo da alma, ao qual eu estava perfeitamente habituado. As visitas despediam-se, eu ficava sozinho, evadia-me desse cemitério banal, ia juntar-me à vida, à loucura dos livros. Bastava-me abrir um para nele redescobrir esse pensamento inumano, inquieto, cujas pompas e trevas ultrapassavam o meu entendimento, que saltava de ideia em ideia, cem vezes por página, e eu deixava-o seguir, atordoado, perdido.” Para gozar na plenitude As Palavras, de Jean-Paul Sartre, Livros do Brasil, 2024, é preciso aceitar este passeio na memória até uma biblioteca do início do século XX, dela extrair a formação de uma mentalidade, a descoberta de que foi nesta infusão de leituras que nasceu o prazer da escrita. O menino Sartre é puxado pela mãe e pelo avô, da leitura que hoje se designa por infato-juvenil, um autêntico mundo de aventuras, a estudar em casa é depois inscrito no liceu onde se descobre que era demasiado avançado para a sua idade. Vai olhando à volta os adultos da sua família, confessa que e o seu corpo formavam um estranho casal, é educado no catolicismo até que a fé, um dia, se esvaiu. Teve as suas doenças e foi mimado nas suas convalescenças. Deus o angustia, e Dele passa a descrer: “Se Deus me livrasse das aflições, eu teria sido uma obra-prima assinada; seguro da minha parte no concerto universal, teria aguardado pacientemente que Ele me revelasse os seus desígnios e a minha necessidade. Eu pressentia a religião, aguardava-a, era o remédio. Se me a tivessem recusado, eu próprio a teria inventado. Que não ma recusassem: educado na fé católica, apreendi que o Todo-Poderoso me criara para a Sua glória: era mais do que aquilo que eu ousaria sonhar.” Educado nesta atmosfera de gente cumpridora dos preceitos culturais burgueses, vai-nos deixando registos esplendentes desta sociedade antes da Primeira Guerra Mundial. O teatro, por exemplo: “Os burgueses do século passado nunca se esqueceram do seu primeiro serão no teatro e os seus escritores encarregaram-se de nos relatar as circunstâncias. Quando o pano subiu, as crianças julgaram-se na corte. Os ouros e as púrpuras, as luzes, as pinturas, a ênfase e os artifícios punham algo de sagrado até no crime; no palco, viram ressuscitar a nobreza que os seus avós haviam assassinado. Nos entreatos, a estratificação das galerias oferecia-lhes a imagem da sociedade; foram-lhes mostrados, nos camarotes, ombros nus e nobres vivos.“ Aprendeu a ler, sente-se um beneficiário do amor familiar, é nisto que, surdamente, o vai minando a epopeia da escrita. A segunda parte de As Palavras é em si própria a génese da sua aventura na escrita, ele vai descrevendo as sinuosidades em todas estas tentativas dos seus queridos juvenis, a mãe orgulhosa com estes primeiros escritos, o avô mais cético. Em retrospetiva, faz a sua confissão: “Há alguns anos, fizeram-me notar as personagens das minhas peças e dos meus romances tomam as suas decisões bruscamente e em crise, que basta um instante, por exemplo, para que o Orestes das Moscas conclua a sua conversão. Sem dúvida: é que os faço à minha imagem; provavelmente, não tal como sou, mas tal como quis ser (…) À falta de me amar, fugi para a frente; resultado: amo-me ainda menos, essa inexorável progressão desqualifica-me incessantemente aos meus olhos; ontem, agi mal, visto que era ontem, e hoje pressinto o julgamento severo que farei incidir sobre mim amanhã.” E dá-nos uma despedida que é a sua assumida condição humana posta em palavras: “Durante muito tempo, considerei a pena como uma espada, agora conheço a nossa impotência. Não importa: faço, farei livros; é preciso que o faça; servem para alguma coisa, apesar de tudo. A cultura não salva nada nem ninguém, não justifica. Mas é um produto do homem: este projeta-se nela, reconhece-se nela; apenas esse espelho crítico lhe oferece a sua imagem (…) Lancei-me por inteiro à obra para me salvar por inteiro. Se arrumo a impossível Salvação no armazém, que resta? Um homem inteiro, feito de todos os homens que vale por todos eles, e por quem valem todos os outros.” Um monumento autobiográfico no topo da grandeza da escrita. UA-48111120-1
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